Edição 01 - Dezembro de 2006


Barreira na rodovia

A Kombi tinha placas de Gravataí. Voltava da região de Passo Fundo em direção à capital. Na frente, ao lado do motorista, viajava um homem de 38 anos, foragido e com mandado de prisão expedido pela Justiça. Ele usa barba e utiliza documentos falsificados. Na parte de trás do veículo iam três menores de idade, duas meninas gêmeas de 9 anos e um bebê de colo, junto com a mãe. No volante o pai das crianças.

Durante o trajeto, logo após a parada do almoço, faltando uns cento e cinqüenta quilômetros para chegar a Porto Alegre, encontram uma barreira conjunta da Polícia Rodoviária Federal com a Brigada Militar. Os dois homens se olham em silêncio. O pai espia no retrovisor e constata que a mulher está amamentando. As gêmeas discutem por causa do Nintendo, que uma monopoliza em detrimento da outra. A mulher, sem afastar a criança do peito, apanha no chão e coloca em cima do banco, junto ao corpo, uma bolsa plástica cor-de-rosa e branca com motivos Disney.

Logo à frente, cerca de 200 metros antes do bloqueio em ambos os sentidos da rodovia, dois brigadianos de sub-metralhadora nove milímetros, um em cada lado da pista. Um terceiro, guarnecido por outro policial militar (armado de calibre doze cano longo), sinaliza para os veículos irem reduzindo a velocidade. Pouco mais adiante, exatamente no ponto onde a Kombi parou no final da fila de carros, ainda antes dos cavaletes que isolam do trânsito os veículos sorteados aleatoriamente, dois patrulheiros rodoviários estão parados no acostamento à direita da pista, ao lado de suas Kawasaki Ninja 1100*.

As gêmeas continuam brigando pela posse do game portátil, a mulher segue alimentando o bebê e os dois homens permanecem impassíveis. O veículo é novo, menos de quatro anos de uso. Documentação em dia, parte elétrica revisada, nenhuma lâmpada queimada, sinaleira quebrada, pneu careca ou qualquer coisa que pudesse causar problema.**

O motorista encosta e pára. Um brigadiano de óculos escuro e jeito de durão inescrupuloso se aproxima. Pede documentos do veículo e do motorista. Outro policial contorna a Kombi e bate com o cacetete na porta de trás, querendo espiar lá dentro. O homem ao lado do motorista retira o cinto de segurança, vira-se e destrava a porta de correr. As gêmeas agora estão em silêncio, a mulher recolheu a teta e o bebê ainda não arrotou. No chão do carro, entre os bancos de trás virados um para o outro, além de algumas malas, sacolas com frutas e legumes, há uma roda de Brasília montada num pneu careca.

O policial que pediu os documentos, depois de fazer a conferência padrão, liberou o veículo. A Kombi passou incólume pelo bloqueio e andou cerca de dois quilômetros, antes de ser alcançada pelas motos Ninja. O policial rodoviário deu sinal de luz, acionou a sirene e mandou encostar. O motorista obedeceu prontamente, apesar de surpreso e, agora sim, visivelmente nervoso.

O senhor não está esquecendo de nada? Não. Então posso lhe multar por trafegar numa rodovia federal sem a carteira de habilitação e os documentos do carro?

O veloz homem da lei, além de devolver os documentos, ainda desejou boa viagem e perguntou a idade do bebê. A história poderia terminar aqui, mas uma parte do iceberg está submersa e precisa vir à tona: na bolsa plástica cor-de-rosa e branca com motivos Disney, embaixo das fraldas cagadas e mijadas, foram acomodados cinco quilos de maconha; no pneu careca e sem câmara montado na roda de Brasília havia 1,5 Kg de cocaína.

*Uma Ninja 1100 percorre de zero a 100 Km/h em míseros segundos e pode atingir mais de 290 Km/h de velocidade final. Também é um bilhete premiado da morte, mas o motoqueiro nunca considera essa hipótese.

**Aqui, justamente neste ponto da história, manifesta-se o fator sorte: a troca do motorista, poucos quilômetros antes do bloqueio, no posto de gasolina aonde o grupo parou para abastecer e almoçar na churrascaria ao lado. Quem iniciou a viagem de volta foi o homem foragido, com identidade falsa e sem carteira de motorista. Obviamente esse desleixo foi considerado erro gravíssimo, segundo avaliação posterior de um dos protagonistas, no caso a pessoa que me contou a história.

Comentários

Ontem mesmo lembrei do teu blog quando vi teus amigos de Casa Verde no Prêmio. Troquemos figurinhas, então.

Bom retorno.