CRÔNICAS DE VALADÃO
Viagem em família

Valadão teve várias ocupações e endereços. Atualmente sobrevive como músico. Tem uma banda de rock, e a qualquer momento deve estourar nas rádios. Enquanto isso faz bicos numa produtora de áudio especializada em jingles, dá aulas de violão e joga em bingos e caça-níqueis clandestinos.

Seus filhos estão criados. Quase chegando aos cinquenta, ainda vive no ritmo acelerado de vinte anos atrás. Era o auge, como ele mesmo costuma dizer, nos bate-papos etílicos que redundam em desabafos e delírios saudosistas.

Em Porto Alegre, no final da década de oitenta, o bairro Ipanema era muito bem servido no segmento de mercado conhecido como prestação de serviços, ramo do entretenimento adulto. No antigo balneário, ainda hoje um ponto nobre da capital gaúcha, funcionava naquela época duas saunas masculinas e uma boate. Os três estabelecimentos eram muito requisitados. Artistas de passagem pela cidade, jogadores de futebol, jornalistas conhecidos, políticos e empresários eram clientes assíduos.

Naquele tempo Valadão tinha dinheiro, prestígio e amigos importantes. Trabalhava em dois empregos: traficante de cocaína e gigolô. Agenciava quinze garotas de programa, mantidas em sistema de rodízio entre as saunas Gávea e Ilha da Fantasia e a boate Five Star. Nenhum desses lugares existe hoje em dia, mas quem os conheceu deve lembrar, ou desconversa e finge que lá nunca esteve.

Prestação de contas
e
prospecção de clientes

O esquema era simples. Primeiro recrutava as putas na avenida Farrapos. Depois ganhava confiança, tirava das ruas, dava banho de loja e, pessoalmente, dedicava algum tempo e ainda mais dinheiro num programa de aperfeiçoamento. Hoje em dia seria uma espécie de upgrade do staff. Naquela época, apenas um jeito de qualificar a mão-de-obra para ter mais chances de disputar no mercado cada vez mais competitivo.

Quinze por cento do valor recebido ficava para o dono casa. O mesmo percentual era destinado ao cafetão. No final do expediente elas recebiam no caixa, tomavam banho, trocavam de roupa e a prestação de contas acontecia num dos bares que funcionavam à beira do Guaíba. Hoje eles não existem, a prefeitura mandou derrubá-los.

Numa sexta-feira à noite, início do feriadão de Nossa Senhora Aparecida, Valadão despacha apressado com as funcionárias, impaciente para concluir a agenda de audiências. Um importante grupo de rock chegaria à cidade na próxima semana e ele fora acionado por um amigo, dono da produtora que os trazia. A lista de exigências dos músicos incluía justamente os dois itens fornecidos pela Valadão Empreendimentos. Ainda naquela noite deveria se encontrar com o empresário da banda, que viera antes e estava hospedado no Plaza São Rafael. É o mesmo hotel que, anos mais tarde, após fuga cinematográfica do Presídio Central, foi invadido por Melara e os facínoras.

Morangos
O acerto de contas com as funcionárias transcorreu normalmente. Queria agradar ao empresário, e levou amostras dos produtos que comercializava. Duas foram destacadas para acompanhá-lo na reunião do hotel. Como tinham pressa, e não houve tempo para maiores produções, trocaram de roupa e retocaram a maquiagem dentro do carro, a caminho do centro.

O encontro aconteceu na luxuosa suíte onde se hospedara o produtor cultural. Champanhe, morangos e suruba. Depois vararam a madrugada, regados a uísque doze anos e droga. Valadão foi embora com a metade do dinheiro correspondente ao que seria consumido pela banda de rock nos dias de show no Ginásio Gigantinho.

Após a reunião, levou as funcionárias em casa e ainda passou num ponto de vendas 24 horas que mantinha no bairro Tristeza, onde arrecadou mais dinheiro. Tudo aconteceu conforme planejado, ainda a tempo de retornar para casa, carregar o carro e honrar o compromisso familiar. Iria com a mulher, o casal de filhos, a sogra e o cachorro para o litoral de Santa Catarina, de onde retornariam terça-feira após o feriadão.

Chegou ao amanhecer. A mulher, apesar de ciumenta e possessiva, não perguntou de onde viera. Conhecia a natureza de suas atividades, acostumara-se a seus hábitos e horários fora de padrão. Era bom pai, excelente marido, cumpridor de suas obrigações inclusive na cama, não tinha do que se queixar. Dele aceitava quase tudo, menos o contato íntimo com as garotas que agenciava.

Rumo ao litoral
Partiram às sete horas, depois de lauto café da manhã com vários tipos de frios, cucas e pães. A idéia era seguir direto para Laguna. Ficariam hospedados na casa de um amigo no farol de Santa Marta.

A viagem transcorreu sem maiores transtornos, salvo o bate-boca das crianças durante partes do trajeto. Fizeram uma parada em Tramandaí para comprar cigarros, doces, tomar caldo de cana e abastecer o Opala seis cilindros. A mulher, a sogra e as crianças foram ao banheiro. Valadão aproveitou para fumar um baseado atrás do posto de gasolina, antes de retornarem à estrada.

Estavam chegando ao município de Torres, na divisa com Santa Catarina, quando começou a chover. Lá pelas tantas, para desviar de um buraco, Valadão freia o carro bruscamente. Neste momento, por causa do solavanco, percebeu a presença de um objeto indesejável que rolou debaixo do banco do motorista. Era o pé esquerdo de um par de sandálias. Na mesma hora deu-se conta: uma das gurias deve ter deixado cair de madrugada, quando trocara de roupa dentro o carro, a caminho do hotel.

Sem perder a calma, e já temendo que a mulher enxergasse o sapato e fizesse um escândalo, seguiu dirigindo tranquilo como se nada houvesse acontecido. Por sorte, alguns quilômetros à frente, houve um grave acidente envolvendo dois carros e uma carreta. Valadão aproveitou o momento. A atenção de todos voltou-se para a tragédia, e ele rapidamente atirou a sandália pela janela, livrando-se do flagrante.

Aliviado, seguiu viagem e até cantarolou as músicas da Xuxa que as crianças ouviam no toca-fitas. Chegaram ao destino, descarregaram o carro e foram se instalar nos quartos que o amigo destinara à família. A sogra, entretanto, permaneceu no automóvel. Questionada sobre o motivo da demora, respondeu num misto de indignação e perplexidade. “Incrível! Não consigo achar o pé esquerdo das sandálias. Tenho certeza que coloquei debaixo do banco do motorista!”

Comentários

Flávio disse…
Um dia ainda vou escrever assim. (será que eu conheci o Valadão?)
Caco Belmonte disse…
Crônicas de Valadão são histórias reais, adaptadas para preservar identidades. Qualquer um pode ser Valadão. Apenas quem conhece as histórias sabe do que se trata. A arte reproduz a vida, que é sempre mais criativa e surpreendente.
Barao Site disse…
Muito bom, mas estou aqui pensando comigo, quem será o Valadão?
Abraços
Tuba
edu boeira disse…
Muito bom