SOPA DE TATUÍRA
Crônicas de Praia II

Verão de 1978. Florianópolis, Santa Catarina. Canasvieiras, Jurerê e Praia do Forte. Ao contrário do que parece, as memórias mais antigas e lúcidas não foram gravadas no litoral norte gaúcho. Passadas mais de três décadas desde aquela viagem, ainda consigo simular sensações de olfato, audição, textura e paladar, como o sabor da exótica sopa de tatuíra. 

Acampar era moda na época, e vários equipamentos para campistas começavam a surgir no mercado. Desde barracas e acessórios, passando por reboques e trailers de vários modelos e tamanhos, até o cobiçado motorhome Turiscar equipado com o robusto e confiável motor Mercedes-Benz. A família Belmonte viajou num Passat TS 1.6, marrom escuro cor de telha. 

Na estrada, devia ser estranho ver-nos passar, porque puxávamos um reboque verde-limão. E a mãe preparava lanches, garrafas térmicas com água gelada e refrigerante. Os adultos fumavam no carro e meu pai respeitava a sinalização de trânsito. Ainda hoje é assim, avesso às transgressões. Pode estar numa estrada deserta e sem fiscalização eletrônica. Não adianta. Se a placa indica cem quilômetros, andar a cento e quarenta é inconcebível. Logo, nossas viagens no sol a pino, e sem o ar-condicionado hoje tão comum na maioria dos carros, levavam mais tempo do que o necessário. 

 O grande mentor daquela fase naturalista foi meu falecido avô, Ulisses Câmara Villar, bastante acostumado à vida no mato. Habilidade forjada em incontáveis pescarias no rio Uruguai, nos países vizinhos e no Pantanal. De pesca marítima não entendia muito, mas sabia tudo de rios, e por sua incansável sede de conhecimento acabava se inteirando também a respeito da vegetação e fauna desses lugares. 

O urutau vermelho 
Além das histórias de pescador e do gosto pela natureza, meu avô também nos deixou uma "herança política". Liderança do antigo partidão (PCB) na fronteira-oeste, participou de vários episódios da política nacional. Até pouco tempo antes de falecer, aos 90 anos, ainda era procurado por jovens militantes em busca de experiência, historiadores e até jornalistas atrás de informações para livros e reportagens. 

 Ulisses nasceu em 1906. Em 1932, embarcou num trem cheio de soldados em direção a São Paulo. Não chegou a combater. A composição foi interceptada e quem não fugiu acabou preso. Seu primeiro discurso, em cima de um caixote, aconteceu numa estação férrea, orientado por Batista Luzardo. O experiente centauro dos Pampas, ao perceber o sentido das palavras pronunciadas pelo jovem orador, mandou que descesse imediatamente do púlpito. “Não diz isso, menino. Isso é comunismo!” 

 Quando houve o golpe de 64 meu avô era titular de um cartório de registro de imóveis em Uruguaiana. Foi cassado, exilado no Uruguai e, por saudades da família, retornou para entregar-se aos facínoras. Foi preso e cumpriu temporada na carceragem do exército, onde teria sido bem tratado, segundo ele. Aos 65 anos, ainda forte como um Clint Eastwood, meu avô conduziu nossa claudicante iniciação ao mundo da pesca, e do que hoje se conhece como turismo de aventura. 

Anos consecutivos de veraneio em barraca, sempre no litoral catarinense. Foram testemunhas dessas empreitadas, que incluíam ajudar na pesca de arrastão na praia dos Ingleses, e ganhar de brinde cações e tainhas, alguns cronistas conhecidos e até personagens que fizeram história no futebol. No camping dos Eucalíptos, em Jurerê, também veraneavam os jornalistas Mário Marcos de Souza, Pedro Macedo e o narrador esportivo Paulo Cagliari, entre outros. 

 Naquela Jurerê anterior à década de 80, ainda não existia a especulação imobiliária que transformou uma praia pacata em point de celebridades, e refúgio de alguns que fazem dinheiro de forma não-convencional. O balneário alagava nos dias de chuva, as pitangueiras tomavam conta de tudo e os argentinos já eram assíduos no pedaço. O acesso à Ilha do Francês era liberado e a fortaleza de São José da Ponta Grossa ainda estava abandonada, praticamente em ruínas. 

Lembro que fiquei muito impressionado quando, pela primeira vez, entrei nas celas lúgubres daquele prédio cuja construção teve início em 1740. A obra de função militar foi erguida a partir de um projeto do Brigadeiro José da Silva Paes, que apenas três anos antes construíra o Forte Jesus-Maria-José, onde teve origem a cidade de Rio Grande. Ainda hoje, quando visito o local, sinto uma atmosfera estranha naqueles cubículos que já foram habitados por prisioneiros, entre o final do século dezoito e meados do século dezenove. 

 Quem tinha um chalé de madeira na estrada de acesso à praia, rente ao asfalto, mas com um campo de futebol praticamente nos fundos de casa, era o ex-goleiro do Internacional, e depois técnico de futebol, Carlos Gainete. Lembro de ver meu pai jogando peladas muito disputadas, tipo rachão mesmo, com a participação do também ex-jogador Saul, cunhado de Gainete que defendeu os clubes Guarani de Bagé e Vasco da Gama.

Comentários