CRÔNICAS DE VALADÃO
Penitenciária Estadual do Jacuí

Ligação não identificada no celular. Valadão abomina esse tipo de chamada. Pode ser operadora de telemarketing, do outro lado alguém que negocia dívida ou vende qualquer coisa. Ressabiado, atende ao telefone. Reconhece a voz. Puta que o pariu! É o Palito.

Disfarça. Trata-se de um amigo que não gostaria de reencontrar tão cedo. Foram parceiros em várias caminhadas, mas faz alguns anos que não têm contato. Por força das circunstâncias, o interlocutor fala de uma cela na Penitenciária Estadual do Jacuí.

Valadão aposentou-se. Não quer envolvimento com ilícitos. Nada de atividade perigosa ou que possa dar errado por descontrole. Pagou a dívida com a sociedade. Dois anos em regime fechado e o resto cumpriu no semi-aberto. Hoje tem carteira assinada, residência fixa. Também vai à igreja e atua numa ONG que reintegra ex-detentos por meio de oficinas profissionalizantes. Atualmente, além de uns baseados, seu único contato com a contravenção é quando frequenta salas secretas em botecos, padarias e agências lotéricas que exploram máquinas clandestinas de bingo e caça-níquel.

Receoso, ouve o que o outro tem a dizer. Para seu alívio, apenas um pedido simples. Por causa da descoberta de um suposto plano de fuga, cuja autoria lhe fora falsamente imputada, Palito perdera por tempo indeterminado o direito às visitas íntimas. Daí pediu o celular emprestado a um companheiro. Outro lhe forneceu o chip.

Ligou, e agora explica a situação. Precisa de alguém confiável para, um dia por semana ou a cada dez dias, verificar como andam as coisas em sua casa. Nada mais. Valadão reconhece sinceridade no relato. Comove-se com o tom de desabafo. Chegou a pensar no pior, mas favor de amigo é sinal de que ainda o consideram. A última coisa que deseja é entrar de otário em roubada, transporte de droga ou coisa pior, mas agora tudo bem.

Não foi preciso negar um favor. Temia que lhe pedisse para ir contra o que acredita hoje em dia. Até missa dominical na paróquia do bairro ele tem assistido. Às vezes não consegue entender o sermão do padre, mas o simples fato de entrar na igreja já lhe causa uma sensação de alívio. Para ele o sacramento da eucaristia equivale a uma troca. O padre escuta durante a semana, no domingo o biscoito desmancha debaixo da língua e segunda-feira começa outra vez. Ciclo interminável. Reservatório atinge o limite, daí vem o sacerdote, a confissão, uma bolachinha consagrada e o pecado novamente.

Atitudes extremas
Três dias após o telefonema, Valadão visita a casa do detento. O endereço ainda é o mesmo. zona nobre de uma cidade vizinha a Porto Alegre. Vai de moto, apesar da chuva iminente. No caminho, recorda os tempos de amanhã incerto, sempre pronto ao revide ou a fuga. Percorre o trajeto entre as cidades e lembra-se de como antigamente as coisas eram efêmeras. Dinheiro vinha com facilidade e era gasto de forma irresponsável, rapidamente. Ainda bem que conseguiu abandonar aquela vida.

Palito, franzino desde a infância, casara-se com uma mulher alta e larga. Loreci, mais conhecida como Shamu, pesava quase cem quilos. O apelido, alusão à baleia Orca de um parque aquático em Orlando, foi ele mesmo quem inventou na década de 80. Com parte do dinheiro logrado em assalto a uma agência do Banco do Brasil no interior do estado, fizeram o passeio à Florida, onde também visitaram as lojas de Miami, o complexo Disney, montanhas russas e parques de animais em Tampa.

Apesar do tamanho e de ser um sacana por vocação, fora do convívio com os amigos Palito era homem violento, intempestivo, capaz de atitudes extremas. Matara mais de uma vez a sangue frio. Da mulher, por ironia, apanhava sem reagir. Porrada na cara, de mão aberta e fechada, na frente de qualquer um, onde quer que fosse e a qualquer hora do dia ou da noite. Acontecia com frequência, sempre que Shamu flagrava uma de suas putarias.

Surpresa
Valadão chega à residência de Palito. Estaciona a moto em frente ao portão. Desliga o motor, desce do veículo, retira o capacete e deixa em cima do banco. Caminha em direção a uma mulher que lava a calçada com mangueira e água. Ela para o que está fazendo e vem lhe atender.

- Pois não?
- Boa tarde! Gostaria de falar com a Shamu. Ela está?
- Quem?
Valadão, confuso, repete a pergunta.
- Gostaria de falar com a Shamu. Ela está?
- Deve haver algum engano.
- Talvez eu tenha errado a casa, faz tempo que não venho, mas era nesta rua com certeza. Por acaso a senhora conhece Loreci, mulher do Palito?
- Quem?
- Lo-re-ci.

Ela começa a rir, ele não entende. Em seguida a mulher atira a mangueira por cima do gradil, dirige-se ao portão, abre e fez sinal para entrar. Ele retorna, pega a moto e empurra para dentro da casa. Ela o espera passar, fecha o portão e caminha pela grama do pátio interno para desligar a torneira. Valadão empurra a moto e estaciona no puxadinho de Brasilit ao lado da casa. Retira a chave da ignição, guarda no bolso da calça, larga o capacete em cima do banco e vai cumprimentar a desconhecida.

Aperto de mãos, beijinhos no rosto, apresentações. Ainda sem entender o que acontece, segue a mulher pela lateral da casa em direção à parte dos fundos. Ao vê-la de costas, faz a avaliação. Baixota e gordinha, mas até que jeitosa. Calca suplex atolada, calcinha minúscula, passo rebolado.

Agulha de tricô
Sentado à mesa da sala, Valadão bebe café solúvel batido com açúcar. E atualiza-se a respeito da vida conjugal de Palito. Loreci morreu. Na tentativa de emagrecer, submeteu-se ao procedimento do balão intragástrico. Não tendo conseguido suportar a fome, introduziu na barriga uma agulha de tricô. Por azar, além de romper a bolsa inflável de silicone, também perfurou uma artéria.

Soraia veio morar com Palito seis meses após a morte da outra. Trouxe duas filhas e um aquário. Presente do pai das crianças, morto pela polícia. E ela também chegou a cumprir temporada no cárcere. Formação de quadrilha e assalto a mão armada. Pilotava um carro de fuga, pneu estourou e o resto não lembra. Quando acordou já estava na ambulância a caminho do HPS, algemada à maca.

Valadão ouve atento. Várias histórias, enquanto experimenta bolo de milho, belisca salgadinhos Elma Chips e bebe Coca-cola. Escuta o que ela tem a dizer. Observa, analisa. Sinais, movimentos do corpo. Leitura de entrelinha nas palavras. Apesar de aposentado, não perdeu o tino do malandro, como ele mesmo define o que considera uma de suas qualidades, que é a capacidade de identificar seus pares. E se os indícios não confirmarem a suposição, para ele o maior argumento favorável à desconfiança é a falta de lógica entre o discurso do amigo Palito, e a prática constatada logo nos primeiros minutos de convivência com Soraia.

Solidariedade
Para justificar o que pretende fazer, mentalmente Valadão apresenta argumentos. O primeiro é que o amigo teve vergonha de revelar o verdadeiro motivo da ligação. Mulher de ficha corrida não precisa ser protegida por ninguém. Se bobear, salvaguarda precisa quem estiver a sua volta. O segundo argumento é que Palito conhece a mulher, deve estar ciente de suas necessidades. E o argumento definitivo é que, para um presidiário, e isso ele sabe por experiência própria, é mais fácil dividir um problema com amigos do que contar com a solidariedade de vizinhos ou desconhecidos. Valadão agora pensa no domingo. O encontro semanal com o padre é na quinta-feira anterior à missa. Hoje é terça-feira, melhor omitir os acontecimentos desta data.

Pensando bem, raciocina, entre o castigo divino e uma represália por negar solidariedade ao ex-companheiro, mil vezes a primeira opção. Além do mais, com essa gente não se brinca. Afinal, quem garante que Shamu, ao invés da versão contada por esta tal Soraia, não foi assassinada e seu corpo talvez esteja enterrado aqui mesmo, no pátio desta casa, cortado aos pedaços?

Comentários

ViaDutras disse…
Muito bom, já tava com saudades dos teus escrito. Reina grande expectativa para os próximos episódios. Manda ver, Caco.
zanuzo disse…
Envolvente, parabáns.
zanuzo disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
edu boeira disse…
Muito bom. Perfeito!