Noite passada eu sonhei que o Paulo Sant’ana tinha nos deixado. Partira assim, de repente. Simplesmente não acordou pela manhã. A sua última coluna, magistral, ainda virgem de leitores, estava quentinha nas bancas, nas casas dos assinantes e na Internet. Suas derradeiras palavras, impressas em Zero Hora, fizeram jus à genialidade demonstrada ao longo dos anos, na obrigação do ofício diário. Apenas os familiares, os amigos mais íntimos e a direção da RBS sabiam do óbito.
Perdemos nosso imortal sem fardão. Gênio idiota.
E logo a má notícia foi disseminada. Era difícil acreditar. Ainda ontem ele estava ali, cheio de vida, no Jornal do Almoço e no Sala de Redação. Houve comoção geral em todo o Rio Grande. O governador decretou luto oficial de sete dias, gremistas anônimos eram vistos em prantos e até os colorados ficaram arrasados com aquela perda irreparável. Para eles, e também para os leitores, ouvintes e telespectadores, era como se o Sant’ana fosse um membro da família, alguém muito querido e insubstituível.
Naquele dia foi como se o mundo estivesse girando mais devagar. Dentro dos ônibus, nos táxis, nas repartições públicas, nos bancos, nas lojas, na Rua da Praia, no Salgado Filho, na Rodoviária, nas calçadas, nas praças e em todos os lugares a morte do Sant’ana era o único assunto. Para os gaúchos, nem a despedida do Teixeirinha fora tão dolorida.
Apesar do momento de dor, houve um pequeno incidente político por conta do velório. A Câmara Municipal, em detrimento do Grêmio, decidiu reivindicar o direito sagrado de prantear o ilustre. Foi preciso a intervenção do Arcebispo para encerrar a pendenga.
Rapidamente, longas filas se formaram nas imediações do Estádio Olímpico. Caravanas vinham dos lugares mais recônditos e até o Julio Iglesias confirmou presença na despedida do amigo. A EPTC e a Brigada Militar, para controlar o trânsito na Azenha, tiveram de montar uma verdadeira operação de guerra. Do alto, no helicóptero da Gaúcha, o repórter Mauro Saraiva Jr passava boletins a cada quinze minutos. Pedro Ernesto Denardin fez questão de abrir a cobertura jornalística. Engasgado, a muito custo conseguiu ler um longo e emocionado editorial, corrigido às pressas pelo Nilson Souza.
Foi durante o velório, em pleno gramado do Olímpico, que surgiu a notícia do Testamento. Falaram nas rádios, divulgaram na Internet e fizeram comentários nos corredores dos veículos de comunicação e agências de propaganda. Uma verdadeira campanha relâmpago foi desencadeada entre intelectuais e artistas.
O que se dizia como verdade é que o Sant’ana, num dos seus momentos de gênio, relacionara uma lista com algumas pessoas que teriam condições de continuar produzindo todos os dias, com qualidade e sapiência, no espaço que ele herdara do saudoso Carlos Nobre. Diziam que ele teria convencido o Nelson Sirotski a levar a sério esse testamento, onde deixara instruções sobre como proceder na escolha de um substituto para o privilegiado espaço jornalístico.
Grandes nomes da escrita foram cogitados, inclusive do eixo Rio-São Paulo. Chegaram a dizer que o Augusto Nunes estava voltando a Porto Alegre e a RBS lhe daria outra casa no Jardim Isabel, com vista panorâmica para o Guaíba. Juremir, Assis Brasil, Tabajara, Liberato, David Coimbra, Martha Medeiros, Eliziário, Kenny Braga, Ibsen, Galvani, Lya Luft, Eduardo Bueno, Fogaça, Marcelo Rech, professor Ostermann, Luís Augusto Fischer, Cíntia Moscovich, Letícia Wierzhowski, Fabrício Carpinejar e vários outros eram tidos como virtuais herdeiros do Sant’ana.
Aquele espaço nobre, lá no meu sonho, jamais fora preenchido por nenhum outro colunista. A perda do Sant’ana - verdadeira instituição, patrimônio cultural imaterial de todos os gaúchos - desencadeara o fim de um antigo hábito, enraizado no cotidiano de milhares de leitores. O jornal Zero Hora, depois do Sant’ana, nunca mais foi lido de trás para frente.
A propósito: A história do testamento nunca existiu. Foi uma grande sacanagem, bolada pelo último sobrevivente do legendário Grupo Ivanhoé.
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