A MORTE DA VETUSTA
V.02
1
“É hoje que eu mato essa velha”, concluiu Antonio Carlos, no momento em que avistou sua escova de dentes mergulhada num copo, junto à dentadura da avó. Os dois moravam juntos há quase trinta anos, desde que os pais de Toninho faleceram num desastre de automóvel. Viúva, desocupada, Dirce tomou para si a educação do neto. E foi ensino rígido, quase espartano. Sonhava para ele um futuro brilhante, como padre ou militar. Toninho nunca simpatizou com a ideia do celibato, nem com a disciplina da caserna.
2
Eram dez horas da noite e tudo transcorria normalmente. Quando os pais da noiva perguntaram onde estava sua avó, inventou uma desculpa e disse que a velha não estava passando bem, tendo preferido ficar em repouso no quarto.
Até o momento em que ela resolveu aparecer, todos estavam acreditando no mal-estar da vetusta. Quando surgiu de forma súbita e inconveniente, não houve desculpa plausível. Nua, descabelada e com o corpo todo lambuzado em fezes, irrompeu na sala dando gritos histéricos. Rodopiando, como se dançasse uma valsa que só ela podia ouvir, fez a volta na sala e depois sentou à cabeceira da mesa. Aparentemente, todos agiram como se a visão daquela velha nua e cagada fosse a coisa mais natural do mundo. Como se em toda família houvesse uma avó tresloucada. Toninho não conteve a ira. Possesso, levantou-se da mesa e partiu aos berros pra cima da velha.
A mãe da noiva, muito solícita, resolveu ajudar enquanto a empregada não aparecia. Levantou-se, tirou o casaco e tentou cobrir a velha, que recomeçou a gritar, babando e batendo com a testa na quina da mesa. De repente parou, revirando os olhos.
Com a ajuda da empregada e do pai da noiva, conseguiram arrastá-la para o quarto. Chamaram um médico e deram-lhe um forte sedativo. Após o incidente, Toninho tentou explicar que era tudo mentira da velha. Nem a noiva acreditou.
A partir daquele dia Toninho mudou. Sua vida passou a ter uma única e grande expectativa. Sentia-se miseravelmente maligno ao desejá-lo. Não podia deixar de fazê-lo. Para ele, a única coisa que importava era a morte da vetusta. Desde que fora constatado que a velha tinha um câncer no intestino grosso, passou a acompanhar de perto a evolução do quadro clínico.
Apesar do câncer lhe corroendo, demonstrava ser um exemplo de que o corpo humano é capaz de realizar coisas incríveis. O tempo passava e os médicos iam lhe desenganando. Mesmo assim resistia. E não tardou a chegar o momento em que Toninho, cansado de esperar e gastando uma fortuna em remédios e hospital, resolveu dar um fim àquele sofrimento. Entrou no quarto da velha disposto a cometer o grande desatino. Encontrou-a coberta por um lençol. Uma técnica de enfermagem ia saindo e balbuciou pêsames.
Publicado originalmente em Contos de Oficina 10, 1993; EDIPUCRS.
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