REDENTORA
Paulo Dutra de Carvalho foi convidado para uma solenidade alusiva aos quarenta anos do golpe militar. Teria refutado, em outra situação, caso seu nome não estivesse sendo cogitado para concorrer à Prefeitura. Naquela época usava um codinome, como todo mundo. Frequentou cursos de guerrilha, assaltou bancos, trocou tiros no meio da rua e por muito pouco não conseguiu fugir para o Uruguai. Foi apanhado na estrada, a caminho do Chuí. O restante do grupo nem chegou a sair de Porto Alegre. Houve uma batida no aparelho.
Foi interrogado no segundo andar do Palácio da Polícia, durante trinta e seis horas ininterruptas. Seviciado. Humilhado. Nunca contou, ninguém jamais soube. Depois de solto viajou para o interior, ficou escondido alguns meses, cruzou a fronteira e conseguiu embarcar para a Europa, de onde retornou com os outros exilados, quando houve a anistia. No degredo, durante longos anos, permaneceu incógnito e temeroso. Não conseguiu esquecer os momentos de pânico vividos no interior daquela masmorra, na esquina das avenidas Ipiranga e João Pessoa. Lá dentro, guardado numa cela escura, podia ouvir o grito lancinante dos outros presos.
Socos. Pontapés. Sopapos no ouvido. Pau-de-arara. Maricota. Choques no saco. Afogamento. Dedos quebrados. Lembrou de tudo isso naquele dia, durante a cerimônia. Quarenta anos do golpe. Reportagens especiais, depoimentos emocionados. Não conseguiu segurar as lágrimas. A televisão filmou, os jornais fotografaram e os repórteres de rádio fizeram uma descrição detalhada, em voz baixa e solene. Roberto, Zé Flávio, Marina, Luciano e Luiz Antonio. Poderiam estar vivos, se não os tivesse delatado.
*Publicado originalmente em Contos para ler cagando – Edição independente, 2004.
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