O TREM HÚNGARO



Nunca mais falei com a vó. Ela mora longe, nem sempre é possível receber notícias. Às vezes, quando menos espero, obtenho a informação. Hoje mesmo vieram dizer que o vô chegou faz algum tempo. O tráfego é movimentado em direção àquele lugar. Tem uma parada obrigatória, a meio caminho, na estação exclusiva dos passageiros que ainda não podem ir além. 

A vó partiu antes. O velho não pôde ir, ainda precisava resolver algumas coisas. Lembro do dia em que viajou. Na despedida, sabendo que levaria tempo para reencontrar sua companheira, porque nem todos podem fazer essa viagem a qualquer momento, chorou de um jeito que eu nunca tinha visto. 

Longo percurso para chegar na cidade da minha avó. É proibido embarcar a qualquer hora. Tem lista de chamada. Depois da última estação começa o terreno sinuoso, requer a presença de guias e guardiões. Não pode andar apressado. Ao longo do trajeto aparecem os sinais. Para quem sabe ler, indicam o caminho. 

Muita gente não consegue fazer a travessia. Alguns desistem, outros ficam pelo caminho. Não tenho permissão para visitar meus avós. Recebo as notícias de um amigo. Alfândega livre. Cruza ao largo das filas. Foi quem me falou sobre a chegada do vô, retido na estação, antes de seguir o resto do percurso. Também soube que meus tios cruzaram a fronteira. Meu avô e o tio coronel já estão planejando uma pescaria, junto com outros tios e compadres que pouco conheci. 

Minha velha não mudou. É a mesma do tempo em que viajávamos no Trem Húngaro, a caminho de Uruguaiana, rasgando o pampa nas frias madrugadas de julho. Do nosso lado da fronteira as combinações de passageiro foram desativadas. Onde minha avó mora não existe trem, não existe ônibus ou metrô. Ninguém anda de carro. Não há pressa ou relógio. O sítio deles é longe, nem sintoniza o rádio. Não há telefone, televisão, computadores, internet. 

Me deixaram escrever uma carta, na qual expliquei o porquê da intermitência nas comunicações. O hiato ocorre, pois nem sempre é permitido falar àqueles que vivem além da fronteira. Rígido controle. Merecimento é pré-requisito. Por isso minhas cartas não têm a frequência desejada. Desta vez, no exíguo espaço permitido, consegui falar as coisas importantes. Sinto a falta de todos. Sei que é preciso discernimento. Desse lado da fronteira, nem tudo funciona do jeito que gostaríamos, ou achamos justo. 

O descompasso, aliado à impaciência, nos torna incapazes de entender que as coisas têm um tempo certo. Do outro lado, quando chegar a minha vez, haverá uma grande comitiva na gare da estação férrea. Muita festa e choro de alegria. Um dia, não imagino quando, serei autorizado a viajar muito além. Guardião de fronteiras.

*Vídeo sobre o verdadeiro Trem Húngaro, que fazia a linha Porto Alegre – Uruguaiana.

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