CARTA A FABIANO


Faz dois anos, saudoso amigo, desde o latrocínio que nos privou do teu convívio. Nada mudou. O mundo continua insano. Brasil, outra vez, tensionado na incerteza. Beira a convulsão. Alguns consideram ameaçadas as instituições de nossa imberbe democracia. Até a intolerância religiosa voltou a assombrar. Não a víamos forte desde Getúlio, quando o polícia detonava as religiões de matriz africana. Desta vez, evangélicos destoantes barbarizam geral. Atacam espíritas, umbandistas e católicos. Os dois primeiros com maior veemência. “Necromantes, a serviço do 7 Peles”. Passivos, acompanhamos o plantio e a germinação dessas sementes estragadas. Colheita de frutos podres. No país onde tudo é possível, faltava a guerra santa. 

Faz dois anos, desde aquela véspera de feriado. Saíste para nunca retornar. A mesa de trabalho permaneceu desocupada por meses. Ao contrário do que dizem, algumas pessoas são insubstituíveis. Ajudei a reunir teus pertences numa caixa de papelão, entregue solenemente à família. Um dos facínoras foi preso. Condenado, cumpre pena, mas logo estará de volta às ruas, não sabemos com qual estado de espírito. Não é isso o que me faz pensar. Para mim, seria mais fácil admitir que os acontecimentos decorrem ao acaso. É cômodo negar os desígnios da providência e desacreditar a existência da bruxa. Conveniente ignorar o que não pode ser explicado. Digo isso, considerando os dias e as horas anteriores a tua transmigração.   

Faz dois anos, desde que presenciei aquela conversa com tua mãe. Quarenta e oito horas antes do ocorrido. Não sabíamos o que viria pela frente. Sequer suspeitávamos. Mesmo assim, encasquetei. Apreendi o tom, inclusive as respostas que não ouvi, deduzidas de tuas réplicas. Vozes amorosas ecoaram em meus ouvidos. Mãe e filho. Harmonia. Sentimento arraigado. Tuas palavras emocionaram até os ossos. Mais ainda, dali adiante, quando percebi a despedida involuntária, inconsciente. Por telefone, combinaram um reencontro que nunca houve. Ao menos, não aqui. Tua mãe não fez a viagem a tempo. Empreendeu outra, ano seguinte, quando também desapegou deste mundo e partiu atrás de ti, rumo à vida enorme. 

Faz dois anos, desde o início da orfandade de teus filhos. Testemunhei teu empenho na obra da paternidade. Difícil tarefa. Assentar as bases de uma edificação que será concluída por conta própria. Deixaste o exemplo. Fica tranquilo, tenho certeza que eles sabem quem foste. Homem digno, de princípios, dedicado à família e ao trabalho. Capaz de cotidianos gestos de grandeza, como ajudar sem pedir em troca. Ensinou muita gente. Estagiários, recém-chegados à profissão. Hoje ocupam posições de destaque em veículos e assessorias. Esse trabalho nunca remunerou, porque não tinha preço. A partir de agora, cada vez que alguém lembrar de ti e pensar nos teus gestos despretensiosos, sentirás uma vibração balsâmica. Não foi à toa que vieste.         

Faz dois anos, desde aquele primeiro de maio. Esperava autorização para escrever. Em casa, mantenho um relicário instalado na sala. Objetos de valor imaterial. Primeira máquina de escrever elétrica, engradado de miniaturas Pepsi, todos os modelos do Yo-Yo Russel Coca-Cola, peões de madeira, carrinho de lomba miniatura, esculturas malucas, obras de arte esquisitas, coisas do gênero. Disposta num canto, exponho a caixinha de latão da Souza Cruz, presenteada por ti, onde está reproduzida a carteira de cigarros Hollywood, retro anos 80, alusiva ao festival de vela que acontecia à beira do Guaíba, onde vivi infância e adolescência. Noves fora, percebi que poderia escrever no dia em que a latinha amanheceu deslocada, revirada em seu nicho.  

Faz dois anos que reverencio tua memória. Cultuo meus prediletos, desde antes do exílio dos deuses. Ancestrais. Quem foi importante para mim. Lembras de nossas conversas, quando eu explicava de forma resumida e alegórica aquilo que hoje é a tua realidade? Nada mudou, tudo está diferente. Místico. Predicado de quem transita na sombra e percebe o que outros não alcançam. É o cara que adivinha o presente embrulhado no pacote (sentido da vida), sendo capaz de descobrir seu conteúdo sem rasgar o papel do embrulho (antes da morte). Nosso ouro não é o ouro vulgar. O obscuro pelo mais obscuro. A arte requer o homem inteiro, capaz de dissipar as trevas do espírito e acender a luz dos sentidos. Maior a árvore, mais profunda a raiz. Simples assim. 


Exu Literato


Dedicado a Fabiano Cardoso. Pai de família, jornalista. Deixou muitos amigos, boas lembranças e exemplos a seguir. Partiu em 1° de maio de 2014, vítima de latrocínio. 

Zero Hora: Jornalista vítima de latrocínio é sepultado em Canoas

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Diário de Canoas

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