O BAQUE DA PERSPECTIVA

Faz parte do ofício. Ando pelas ruas em busca do detalhe que escapa por ordinário. Comumente desprezado, embora inserido à paisagem urbana. A cidade é uma aula de história a céu aberto. Laboratório de percepções. Garimpo invisível à maioria, ocupada em administrar a azáfama que se impõe rotineira. Para mim, esse olhar vagabundo é oxigênio. De outra perspectiva caio no vácuo. Nada existe, implodo e a vida perde o sentido. 

Outro dia, por causa de uma agenda, estive no rebuliço da capital. A caminho, questão de minutos, paisagem na cidade alterou. Manhã virou noite. Ventania, trovoada. Manga-d’ água. Pessoas em busca de abrigo. Guarda-chuvas revirados. Semáforos sem energia, cruzamentos congestionados, automóveis presos. Buzina, xingamentos. Lixo entupiu bocas-de-lobo. Bueiros transbordaram. Piscinas de água contaminada inundaram calçadas, alagaram o asfalto.  Pedestres a meia canela, carros a meia roda.

Do transporte público desembarquei ao final da linha, na parte elevada do Centro Histórico. A meia altura do cume, no promontório onde foram traçadas as paralelas e perpendiculares que deram origem à cidade. Rua Marechal Floriano, entre a avenida Salgado filho e a rua Riachuelo. Procurei abrigo sob a marquise do prédio mais próximo. No outro lado da via, meio-fio engolido pela água. Torrente lomba abaixo. Arrasta papéis, tocos de cigarro, garrafas plásticas, latas de alumínio, sacos de lixo e miudezas descartadas ao léu. Pedestres saltitam. Uma senhora revira o tornozelo. Tropeça, cai sentada. Outra perde o equilíbrio e os sapatos, levados na correnteza. 

Enquanto isso, percorro mapas mentais e traço percursos que conduzam ao destino. Estratégias para alcançar o caminho mais curto, enxuto, assinalado por marquises de prédios antigos. Construções erguidas nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta do século passado. Aqui e acolá, vazios correspondentes às edificações modernas. Fachadas lisas, envidraçadas. Caixas de ferro e concreto sem personalidade. Também destoam dos sobrados e casas térreas de meados do século vinte, casarões do final do século dezenove. Hoje farmácias, lotéricas, ferragens, lojas de roupa e sapato, bazares de quinquilharia da China. 

O trecho final de meu destino incluía caminhada ao longo do Viaduto Otávio Rocha, na avenida Borges de Medeiros. A chuva amainara, permitindo o deslocamento. Passos largos, transcendi. Viajei desde a segunda década do século vinte, quando o primeiro plano diretor previu a abertura de uma via que comunicasse às zonas isoladas da elevação do governo e a santa igreja. Intendente Otávio Rocha e presidente Borges de Medeiros demonstraram vontade política para rasgar a avenida. Depois rebaixaram o terreno e interromperam o trajeto da rua Duque de Caxias, onde enfiaram o viaduto. Puta obra do cacete. Toneladas de pedras e milhares de metros cúbicos de areia removidos. Desapropriações, acidentes de trabalho e até morte de operário. Projeto de autoria dos engenheiros Manoel Barbosa Assumpção Itaqui e Duilio Bernardi. Quem venceu a concorrência foi uma empresa alemã. Desde aquela época fazíamos grandes empreitadas, certames internacionais. Três vãos de concreto armado. No centro, bem na altura da avenida, dois pórticos e grandes nichos. Magníficas esculturas de Alfred Adloff, permanentemente aplaudidas por cocô de pombo. Do artista pouco ouvimos falar, ou nada sabemos. Escolas daqui não ensinam. E ainda tem as escadarias de acesso. Amplas, até o nível do viaduto, sustentadas por arcadas onde moram as aves que cagam nas estátuas. Ambos os lados têm estabelecimentos comerciais e instalações sanitárias. Luxo. Balaustrada decorativa nos parapeitos das rampas. Passeio revestido por mosaicos de cimento. Reboco de pó de granito imitando pedra. Tal obra monumental sofre o assédio de vândalos. Não há solução permanente. Tombada, exige restauro rigoroso, à feição do original. Por causa da inscrição no Livro de Tombo, impossível resolver o problema. Um grande painel grafitado, por exemplo, de autoria de algum fenômeno pop. Em tese, poderia alcançar a mínima consideração e algum respeito dos rabiscadores “pixo”. 

Àquela altura interrompi o estado mental elevado. Ao mesmo tempo, louvava a grandeza e lamentava o abandono do viaduto. Dada a circunstância a seguir, não alcancei conclusão. Eis o que houve: momentos após cruzar o vão central da augusta obra de arte, vindo de cima, bem atrás de mim, despencou o homem espatifado. 

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