VERBO AD VERBUM

Um novo livro está a caminho do esquecimento. Narrativa longa. Prefiro não falar em romance ou novela, porque no país de não-leitores algumas pessoas desconhecem o significado. No Brasil a nomenclatura remete a histórias de amor (romance) e teledramaturgia (novela), ao invés de gêneros literários. Prosa?

Não é fácil. Artesanato da palavra. Mais de cem páginas. Anos de trabalho braçal, desde o planejamento à execução. Do suco ao bagaço. Extrair óleo nobre do caroço. Garimpo, ourivesaria. Respeito à matéria-prima!

O ofício solitário - Me policio, todas as vezes em que sinto necessidade de escrever ficção. É uma urgência fisiológica que se impõe. Surge no minuto seguinte àquilo que podemos traduzir como insight, centelha divina ou qualquer outra definição que associamos à necessidade de formatar uma ideia vaga, ululante na mente do autor.

Uma vez tomada a decisão de usar a “droga” e ministrar o remédio de forma sistemática, cotidiana, tudo o que vem a seguir é sofrimento. Gestar e parir o texto é doloroso, exige dedicação monástica. O autor, solitário, delirante na clausura de sua mente, chafurda o barro da criação e faz nascer a luz, onde antes havia apenas escuridão.

Falando assim parece missão divina, nobilíssima, concedida aos eleitos. Atualmente, vivendo o mundo digital e a era do pensamento multimídia, da comunicação instantânea, pensar e fazer literatura como antigamente, “preto no branco”, pode ser considerado insanidade. Doença incurável. Sabedor de tudo isso, o Exu Literato continua cada vez mais profícuo. Evoluo com urgência.

A roda girou - Nos últimos anos, pequenas editoras têm conquistado prêmios e reconhecimento literário. Por consequência, maior espaço nas prateleiras das grandes livrarias e posições destacadas nos aplicativos e portais que comercializam e-book. Não é uma tendência, mas a consolidação do trabalho pioneiro que se iniciou lá atrás. Final dos anos noventa, virada do século. Fanzine digital via e-mail. CardosOnline era o “papiro” que espraiava a literatura fora do circuito.

Do “e-zine” à saudosa editora Livros do Mal. Primeira centelha, farol nesta pampa remota de poucas luzes. A Casa Verde é outro exemplo. Em 28 de novembro de 2006, Rafael Rodrigues publicou no site Digestivo Cultural uma matéria sobre a editora, com destaque para o lançamento do livro “No Orkut dos outros é colírio”. O texto encerrava com um questionamento a mim.

A editora Casa Verde
por Rafael Rodrigues

Um dos convidados da Bienal do Livro da Bahia, que aconteceu no fim de 2005 em Salvador, foi o escritor mineiro Luiz Vilela. Ele participou do Café Literário, aquela conversa informal entre o convidado e uma entrevistadora. Lembro bem de uma das histórias que ele contou. Seu primeiro livro foi enviado a diversas editoras, que recusaram a obra. Com recursos próprios, publicou o livro, aos 24 anos. Com ele, ganhou seu primeiro prêmio literário. Que quero dizer com isso? Até Luiz Vilela precisou investir, nele mesmo, no início da carreira. E olha só quem ele é hoje...

Atualmente isso é cada vez mais comum. Escritores bancando as edições dos próprios livros, organizando e publicando coletâneas, abrindo pequenas editoras. Uma dessas novas editoras é a Casa Verde. Idealizada em 2004 pela jornalista e escritora Laís Chaffe  ....

Primeiro livro individual publicado pela Casa Verde, "No Orkut dos outros..." é também a estréia “pra valer” do jornalista e escritor gaúcho. Digo “pra valer” porque Caco, questão de alguns anos, publicou de maneira independente (quer dizer, mais independente ainda) o "Contos para ler cagando", sua “pré-estréia”, digamos assim.

“Joel” abre o livro, e mostra ao leitor que Caco não está para brincadeira. Joel sai de casa para buscar um remédio para a filha adoentada, que ficou em casa com a mãe. Apenas isso poderia resultar em um belo e trágico conto. Mas Caco deixa a tragédia óbvia de lado e vai além: mostra um homem pobre, alcoólatra e desconfiado da esposa (ele pensa que a filha não é sua, pois “Mariângela tinha nascido branca, de olhos claros”, bem diferente dele), que desvia o caminho do posto de saúde por conta da necessidade financeira e da necessidade física do álcool. Ao chegar em casa, mais tarde do que o previsto, com o remédio, Joel se depara com a verdade que sempre tentou afastar de si. Impotente, nada faz, a não ser entregar-se ao vício.

O conto que dá título ao livro aborda um tema que pouca gente tem noção da seriedade: os efeitos nada saudáveis que o Orkut pode causar em uma pessoa. O narrador descobre, através do perfil da ex-namorada, que ela sempre fora uma desconhecida para ele. Ele admite que monitorou o perfil da ex, diz que parou com isso depois de algum tempo, mas a coisa se torna viciante, e ele volta a procurar o Orkut da ex. Lembrei de "O mito de sísifo" (do conto, não do livro), de Camus.

“Tejada” é outro ponto alto do livro. Começa com a chegada de um homem à uma casa de praia. Ele e a ex-esposa costumavam passar as férias lá, com os amigos. Ele tinha esperança de encontrá-la naquela ocasião para tentar a reconciliação. Ao vê-la de longe, ele parte sem se despedir de ninguém, por um motivo que só lendo o conto para saber...

Disputando o posto de melhor conto do livro estão, além dos já citados, “Chico” (um “conto de formação”, por assim dizer), “Adalgisa” e “A casca do grão cozido”. Este chega a ser engraçado de tão escatológico. Ao fim das pouco mais de 70 páginas – poucas, infelizmente – de "No Orkut dos outros é colírio", fica aquela sensação de “já acabou?”, e a torcida para que Caco Belmonte não demore a lançar outro livro.

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