A ÚLTIMA VOLTA DO PARAFUSO


Ronaldo estava no Rio de Janeiro quando recebeu a notícia. Ligaram do escritório. Foi um choque para todos. Testemunhas disseram que a BMW desgovernou-se numa curva, subindo a Serra, a uns dez quilômetros de Gramado. Quis saber dos filhos. Eles ainda não tinham recebido a notícia. Antes de desligar o telefone, pediu que a secretaria providenciasse uma passagem no primeiro voo disponível. Naquele momento, sozinho no quarto do hotel, desabou num choro convulsivo.

Maria Elisa passou os últimos dias falando sobre o evento em Gramado. O contrato com a fábrica de calçados tirou a agência do vermelho. Depois do lançamento da nova sandália, com direito a merchandising na novela das oito, poderia manter a dupla de criação e saldar a dívida no banco. Na volta, pretendia conversar com o marido. Prometeu a Tânia que logo resolveria aquela situação.

As pessoas costumavam dizer que eles formavam um casal simpático, bem-sucedido. Volta e meia apareciam nas colunas sociais, frequentando os lugares da moda e as festas mais cobiçadas. A publicitária das campanhas premiadas e o dono da maior revenda de automóveis, com filiais em várias cidades do país. Dez anos de casamento, três filhos e duas crises, com direito a separação e retorno arrependido. Nos últimos tempos, desde que Maria Elisa descobriu o interesse por outras mulheres, Ronaldo tentou mudar.

Três dias antes do embarque para o Rio, sabendo que a mulher pretendia viajar no final de semana, ofereceu a BMW. Maria Elisa estranhou. Ninguém nunca estava autorizado a dirigir os carros do marido. Aceitou a oferta, depois de muita insistência. Não queria magoá-lo, antes daquela conversa inadiável. Ronaldo, detalhista, levou o carro na oficina de sua revenda. Mandou que os mecânicos fizessem uma revisão completa no automóvel. Fiscalizou o serviço, conferindo de perto cada um dos itens verificados.

Uma equipe de televisão, que também estava indo para Gramado, foi quem avisou as emissoras de rádio. A notícia logo chegou a Porto Alegre. O carro passou reto numa curva e bateu de frente num Scania. O caminhão vinha descarregado, descendo a Serra.

Centenas de pessoas estiveram no velório, antes da encomendação do corpo, reservada aos familiares e amigos mais chegados. Maria Elisa sempre falou que gostaria de ser cremada, e que suas cinzas fossem jogadas em alguma praia do Atlântico. Houve um momento, breve e muito intenso, em que Ronaldo e Tânia choraram juntos, abraçados.

Naquele dia, enquanto o corpo estava sendo cremado, padre Borges reuniu os familiares do ente querido e procurou dizer as últimas palavras de conforto. Em sua prédica, deu ênfase e atenção especial ao viúvo, que achou uma pessoa meio perturbada. Na verdade, percebeu que Ronaldo passou o tempo inteiro segurando um objeto metálico, comprido, do tamanho de uma caneta, muito parecido com um parafuso. Notou, achou estranho, preferiu não comentar. Cada louco tem sua mania.

Ronaldo se desfez do objeto metálico quando deixou o crematório. Atirou pela janela do carro, a caminho de casa. Chegou a ouvir o tilintar do metal repicando no asfalto. O objeto permaneceu no chão por vários dias, rolando de um lado para outro na avenida. Foi encontrado por um carroceiro de quinze anos, que o recolheu e guardou numa latinha de Nescau, junto com duas pilhas médias e um canivete enferrujado. À noite, no casebre em que morava com a mãe e três irmãos, consertou a porta da geladeira utilizando o parafuso da rua. A parte de cima, meio chata, ficou uns cinco centímetros pra fora. Naquela parte, gravada numa ranhura, em letras minúsculas, podia ser lida a inscrição BMW – Z8ALC.  

Conto publicado originalmente em livro (coletânea FATAIS; ed. Casa Verde, 128p).

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