EZEQUIEL


Terça-feira acordei com a macaca. Vieram frases arranjadas em sentença. Precisava rabiscar o dito num papelucho. Embarcar no ônibus à esquina de casa. Linha T4 rumo a Igreja São Jorge. Nunca colocara os pés na ermida do bairro Partenon, mas o templo destacava-se ao passar defronte, então universitário da PUCRS, aluno da oficina de criação no início dos anos noventa. Hoje o local exibe portentoso viaduto em três níveis, instalado na esquina das avenidas Aparício Borges e Bento Gonçalves, dando a falsa ideia de que a irresoluta equação do trânsito será respondida por fórmula mágica, coisa que sabemos impossível, porque as pessoas amam entupir as ruas com automóveis. 

Voltando à igreja, aproveitei o momento transcendente que causou o misterioso deslocamento e, intuitivo, desci do ônibus na parada defronte à Academia de Polícia Militar, onde funciona o Colégio Tiradentes em que fui mau aluno. Sempre avesso ao marche-marche dos que obedecem sem questionar, rejeito de antemão a tirania do idiota. Um asno, mesmo com divisas, jamais poderia comandar. Quem andou em tropa sabe a que me refiro. Saudoso liceu das fardas azuis. No intervalo do almoço campeávamos, peleando atrás dos pavilhões, série contra série. Gostava de encarar os valentões mais graduados. Às vezes avançavam em dupla. Zaz. Vupt. Zapt. Ploft. Desabava um nocauteado. Perdão, fulaninho, “não foi de propósito” que o pé te acertou a queixada. Respeitadas as regras do jogo, azar de quem levasse a pior. Trocando em miúdos, acredito, venceu o burro tisnado; hoje ombros estrelados a comandar pelotões, talvez amassar a bunda em escritórios burocráticos. Todos da época devem estar aposentados, muitos antes dos cinquenta anos e alguns com pouco mais de meio século. As regras do jogo.

Dali caminhei abaixo, fluindo pela avenida repleta de casas brigadianas, a maioria em prédios caindo aos pedaços, beirando o cortiço. Também arruinaram o centro de compras que vendia a preço módico às famílias de policiais militares. Outra tristeza, desolação de cidade fantasma, o deprimente picadeiro sem os cavalos a trotar no exercício da equitação outrora premiada, orgulho esvaído da briosa, despedaçada, sucateada pelo tempo e o reincidente descaso governamental. 

Adiante, na esquina que leva ao presídio urbano, nossa bomba-relógio maior, policiais militares em treinamento simulavam bloqueios de trânsito. Silvo breve, silvos longos. Dezenas de recrutas posicionados na calcada da recém extinta Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, a Corag, que o atual governo satanizou alegando desnecessária, embora uma ausência lamentada por pequenos e obscuros escritores como eu, além de outros com maior calibre e alcance. Fizemos uso da editora. Essa gente descartável, o lixo pensante que não contribui para gerar riqueza, propina e lucro. Logro do lobo louco. 

Excesso de dinheiro nunca foi problema. Ruim é quando a balança enverga. O mundo gira à feição dos motores. A culpa não é do automóvel. Saudemos o avanço tecnológico que vem a galope e poderia ser benéfico a todos. Sejamos honestos, ao dizer que as armas nunca mataram. Somos malvadeza até os ossos. Pouco a pouco nos tornamos piores. O mundo não precisava ser do jeito que o fizemos. Morra com urgência quem estiver em desacordo.

Então, naquela manhã desloquei à igreja em que jamais colocara os pés. Não houve empecilho, nenhum transtorno a caminho. No templo de São Jorge me esgueirei à direita e sentei na última fila. O cantinho junto à parede. A meu lado a sequência de vitrais alusivos aos profetas. Apocalípticos alguns. Para além da toada sacra, música de fundo no sistema de som, reparei a arrumação das coisas, a hierarquia dos altares e a minudência canônica da liturgia secular. “Agnus dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem”. Entrei no quadrilátero sem o rito da persignação. A Força Maior habita em mim, pertence a todos, portanto somos o verdadeiro templo a ser frequentado e isto passa, necessariamente, pelo desprendimento e o abandono da arrogância. Ridículo, ousarmos pensar que temos o controle absoluto sobre as coisas. Nossas vidas, por exemplo.

Comovente ir e vir. Fiéis de joelhos no local em que se depositam os pedidos de graça. E aqui nos encaminhamos ao desfecho do arrazoado. Momentos antes de levantar em direção à urna das urgências indulgentes, de relance percebi quem era o personagem estampado no painel a meu lado. Mais de três metros de profeta. Ezequiel, o vitriólico, fonte corrosiva atribuída a mim. Antes de ir embora, coloquei o manuscrito da mandinga na caixinha de Jorge. Rubriquei em livro meus garranchos de canhoto, nalguma página do dia 21 de fevereiro de 2017. Quando o sacristão abrir a urna, caso o faça com frequência, encontrará a mensagem que será prontamente descartada. Mais uma, dentre tantas redigidas por “desequilibrados em busca de auxílio”. Desrespeitosos os que têm a certeza inabalável. Donos da verdade, indubitáveis cretinos, julgam o outro pelo fedor de suas próprias vísceras. 

Boníssimos religiosos. Esqueceram o latim e foram abandonados pela verve possessória. Agostinho nunca mais. Saudoso padre Vieira, a prosa inflamada cuspindo verborrágicas labaredas que deixavam em brasa os ouvidos dos canalhas. Terra rebelde, sempre rebelada, não é por acaso que os alienígenas nos evitam. Morreriam esfolados, caso viessem. Tomaríamos suas naves e invadiríamos seus planetas, depois roubaríamos as riquezas subterrâneas e, possivelmente, iríamos profanar o sagrado e barbarizar geral, currando mulheres e surrando os inocentes. Empalaríamos as crianças. 

Eis o homem. Animal por excelência, condenado à solidão do espaço longínquo. Soarão alarmes por todo o universo no momento em que alcançarmos o aparato necessário à efetiva conquista do espaço. Serão alertadas as raças humanoides. Mobilizadas para que fujam, enquanto houver tempo, pois os terráqueos intentarão contra os planetas pacificados. Existe alternativa; não sejamos moscas de um dia, apesar do cheiro irresistível emanado desde a bosta fumegante. Encerro com a transcrição do papelucho enfiado à urna de São Jorge: “Os textos não me pertencem. Sou a torneirinha de plástico por onde fluem as águas acessíveis a todos e que poucos sabem verter. Caco Belmonte. Exu Literato. Artifex. Simia dei. Serpens mercurii.”

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