MARCHINHA DE CARNAVAL

Feriadão de Momo. Eleutério Antônio perdeu a chance de ir ao camarote na Sapucaí. Nunca apreciou a arte popular, jamais pulou o Carnaval em blocos de rua ou clubes sociais. Esse ano mudou, veio convite à empresa, gostaria de ter ido para circular entre as celebridades no Rio. Porcaria de mulherzinha ciumenta. Não entendeu a situação do diretor-presidente. Ele, o fundador. Amargou falência, enxotado da última sociedade. Aos pinotes saiu em busca do investidor misterioso que aportou capital no produto mercadológico de sucesso imediato, idealizado como infalível, justamente pelo efeito prometido e o largo espectro de aceitação entre homens e mulheres de todas as faixas etárias acima dos dezoito anos. Prêmios em salões de marketing ajudaram a consagrar o rótulo. Foi difícil encontrar alguém certificado disposto a chancelar a formulação produzida em laboratórios improvisados, remetida aos magotes para envasamento numa empresa do ramo cosmético, pequena concessão que não vem ao caso. Graças a amigos nos órgãos governamentais, obteve celeridade no tramite do calhau burocrático de certificações requeridas à liberação das vendas por telemarketing. Mais da metade do valor agregado refere-se a tributações de todos os níveis. Exclusivamente o telefone, volume de ligações comissionado pela companhia. Pulo do gato é a propaganda no futebol. Em todo o estado, consumidores alcançados por ondas de frequência e amplitude moduladas, irradiadas desde as grandes emissoras da capital. Discrição, entrega na porta, milhares de pedidos por semana. No embalo das bebidas energéticas surgiram os elixires e pílulas à base de extratos naturais. Raízes, ervas amazônicas com potencial de estimular a libido. Marcam presença na grade esportiva das rádios AM, os programas independentes nos canais de tevê a cabo. Considerando o número de clientes fidelizados, Eleutério deduz o índice de supostos impotentes que frequentam arquibancadas, cadeiras, camarotes em estádios e arenas. Talvez exista outra explicação e o sucesso provenha mesmo das visões oníricas que deram origem a tudo. No sonho ele conduzia uma carroça rústica equipada à moda cigano, lá pelos idos de 1820, riscando trilhas entre cidades da Banda Oriental sublevada contra o domínio português, que a tornara Província Cisplatina e subtraíra seu gado para favorecer nossas charqueadas e impulsionar a pecuária gaúcha. O alicate de arrancar dentes era ganha-pão, mas o elixir secreto também rendia uns cobres. A beberagem surgia em garrafinhas de duzentos mililitros. O rótulo sem nome estampava um asno de ouro zurrando sob a lua prateada. Noutras incursões envergava trajes monásticos, peregrino através de brumas no medievo europeu, ofertando indultos e relíquias que afirmava terem vindo da terra santa pela mão dos cruzados.

Doralice embarcou a contragosto no exagerado veículo Hammer. Tem horror a espalhafato e o marido faz questão de enfiar aquele trambolho em pleno engarrafamento da freeway. As desvantagens do horário, impossível argumentar. E ainda bebeu destilado antes de sair. Tornou-se frequente isso. Doses a partir das onze horas da manhã. Chamar à razão é falar às paredes. Desde que começou a multiplicar dinheiro em progressão aritmética tornou-se arrogante, manias de grandeza, destrata as pessoas por qualquer motivo.  Proprietários no condomínio de luxo em Atlântida Sul. Cismou que odeia Tramandaí, Imbé; praias de pobre e remediado, respectivamente. Veraneavam nos municípios e agora não prestam. Os familiares dela os aguardam no entorno da plataforma de pesca. Esculachou a tradição cultuada desde os anos sessenta, quando a parentalha lotava o velho casarão de madeira avarandado no imenso terreno arenoso repleto de casuarina e gramíneas com roseta, hoje repartido entre os herdeiros e novas casas. Palavras horríveis atiradas ao léu. “Teu cunhado jornalista um morto de fome, o franqueado da sorveteria italiana é homossexual enrustido, os três sobrinhos maconheiros depravados, as sobrinhas legítimas umas cretinas rebolando de fio dental atrás de noivo rico, a adotada mais ligeira deu uma chave de buceta no filho do ex-deputado, conselheiro perpétuo no Tribunal de Contas”. Na altura do pedágio em Osório o bate-boca incendiou. As crianças se estapeando à vontade no banco traseiro: maiorzinho tentando enforcar o mediano com a faixa do cinto de segurança e o pequerrucho gravateando o grandão, solidário ao mano em desvantagem. Trajeto entupido de hora e meia levou duzentos minutos para ser percorrido, sem contar o trecho da rodovia estadual, após a bifurcação rumo às praias. Na orla surgiu o drama do estacionamento. Quinze minutos dando voltas até encontrar um espaço em que coubesse o mastodonte. Terminou mal encaixado na brecha disponível, obstruindo parcialmente uma garagem de veranista. 

Sandoval caminhou desde muito longe pela beira da praia, antes de parar no quiosque do compadre junto à plataforma. Suado, meio zonzo, artrite massacrando as articulações, varizes explodindo nas pernas, ardência nos calos dos pés e os joanetes bem encaixados nas deformações do velho par de tênis com as solas esburacadas. Dor filha da puta, fome do caralho. Pensou em roer um milho verde e desistiu, o dente frouxo pode cair a qualquer momento. Pescador matreiro, faz bicos no verão para reforçar o orçamento. Depois que terminam as férias não sobra viva alma, última chance de faturar algum extra é o Carnaval. Na cidade entupida com o trânsito caótico, chega a faltar luz por excesso de consumo e a água potável desaparece das torneiras. Neste primeiro dia do feriadão, esposa e filhos esparramados ao longo do trecho que cobre sessenta quilômetros na faixa de areia. Fora da temporada as mulheres têm ocupação nas faxinas e os homens no serviço geral; tratamento em piscinas, jardinagem, consertos, ajustes, pinturas e pequenas obras, incluindo elétrica ou hidráulica. Gente boa acostumada a mourejar. Apesar do horário avançado em plena tarde, estava com pouca sorte e não vendera nenhuma das bolas de plástico que trouxera a quinze reais. Arrependeu-se por não ter pego o carrinho com os bonés masculinos, as cangas e saídas de banho para mulheres. No momento aceitaria dez reais para garantir o rango. Pastel, empada de galinha e refrigerante. Faz tempo que passou a hora do almoço, café e pão com margarina não deram conta. Estômago vazio, úlcera mal curada. Mês passado receberam a boa notícia. O mais velho aprovado no vestibular de educação física, ingressou por esse sistema de quotas que ele não entende direito, mas acha bom e vem a calhar. Bisneto de escravos, ninguém dos seus jamais estudou em faculdade. Farão grande esforço para manter o rapaz no pensionato. Despesas cotidianas, material de estudo. Amigos rifaram dois bezerros e uma vaca de leite, justamente o assunto que proseava no quiosque do compadre quando surgiu o bacana do carrão mal estacionado no outro lado da rua. O mesmo sujeito que cruzou agorinha em direção à areia, bateu boca com a esposa e as três crianças emburradas. Gente do dinheiro tem mania de gritar. Ouviu o pai esculachando o menorzinho, justo no momento em que o coitado tentava desgarrar-se do grupo, talvez interessado nas espigas de milho, não deu para saber, o casal seguiu adiante chispando fogo pelas ventas e agora o homem já está voltando com o menino chorão de arrasto, saltitante, descalço na areia em brasa. “Quanto essa porra? ”  Sandoval se fez desentendido. “Quanto essa porra? ” Pensou no filho e a universidade. Respirou fundo, antes de informar o valor da mercadoria. Momentos depois, caminhando pela areia, a enorme rede com as bolas de plástico equilibradas sobre o ombro, roendo uma espiga de milho noutra mão, imaginou quantas unidades precisaria vender para comprar o utilitário guiado pelo ricaço. Noves fora, abandonou a matemática complicada no instante em que o dente mole caiu.

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