Sábado à tarde no trabalho. Os últimos arranjos antes de retornar para casa. Domingo e segunda-feira livres. Pernoite no serviço a partir de terça. Espaçoso o quartinho dos fundos. “Banheiro privativo”, informou a patroa no primeiro dia. Claudete não atinou o significado, decerto tinha a ver com a privada, o vaso sanitário. Ouviu a explicação e riu, ao compreender o mais importante: as necessidades sem o aperto da urgência, nada de filas antes do banho. Onde mora é o improviso, vivem amontoados, divide a cama grande com os netos de cinco e oito anos, no mesmo cômodo o filho e a nora e o bebê de seis meses. Cães e gatos coabitam. Pombos arrulham empoleirados entre o forro e as telhas. Ratos correm sob o assoalho, baratas fizeram ninhos nas frestas das paredes de madeira carcomidas por cupim.
Excelentes patrões, o seu Antoninho e a dona Leocádia. Natal passado fizeram a surpresa, o terreno escriturado em seu nome. Neste ano prometem a casinha pré-fabricada. É gente do Judiciário, bem novos ainda, embora aposentados. Dois filhos na casa dos vinte e poucos. Bons meninos, mas o caçula terrível. Maiorzinho quase formado na faculdade igual aos pais. Ainda ontem estavam de visita, um sobrinho dela, vindo do interior prestar a prova de seleção nesses troços de mestrado, “doutorizado”, não sabe bem ao certo como chamam essas coisas. O guri é músico, imagina, nem sabia que existia faculdade de música, sempre pensou que as pessoas aprendessem a tocar por aquelas revistas com bolinhas pretas e números no desenho que representa o braço do violão. Tanta coisa neste mundo e a gente nem desconfia.
Rápida e silenciosa, Claudete às voltas da grande mesa no quiosque da churrasqueira ao lado da piscina. Recolhe pratos, copos e talheres sujos, travessas com os restos de comida, potes de doces e compotas, garrafas vazias de cerveja em litro e vinho argentino, guarnições de arroz, saladas, guardanapos de pano babujado, a toalha branca de linho egípcio com respingos de graxa e sangue da picanha uruguaia tipo exportação. Acossada pela fome, beliscou na copa enquanto a cozinheira ajeitava petiscos em baixelas que circularam antes do churrasco assado por Claudionor, o jardineiro agregado, homem dos serviços gerais e pequenos consertos pagos com móveis ou eletrodomésticos descartados em bom estado de uso, substituídos por novos modelos porque o seu Antoninho e a dona Leocádia adoram novidades, compram da internet com o cartão, quase diariamente encostam camionetes ou motoboy dos serviços de entrega. Qualquer coisinha eles pagam, mandam fazer, compram, resolvem na hora, nada é problema, sempre tem alguém para alcançar, forcejar, trocar lâmpada, recolher a sujeira, molhar o jardim, tratar a piscina e alimentar os animais.
Seu Antoninho é bom anfitrião, gosta de agradar aos amigos e mandou fazer tudo no capricho. O casal recém-chegado da Europa trouxe presentes, os tênis dos guris, perfumes, uísques. Claudete ganhou um chaveirinho da Torre Eiffel e ficou com vontade de provar os amanteigados belga, tomara que resolvam beliscar daqui a pouco, depois vão esquecer a lata de biscoitos para ela guardar e dividir com os outros empregados, até levar embora, porque os patrões não gostam de comer nada que já esteja aberto. Os restos de churrasco a mesma coisa, vai recolher e servirá ao carreteiro da família hoje à noite, se bobear ainda sobra um reforço no almoço de amanhã. Até que horas a função, afinal?
Claudete dois corações. Precisa atender no pátio, organizar tudo e ir embora o quanto antes, mas lá dentro recém começou a parte interessante das reuniões dos ricaços, as mulheres no interior da residência, num dos ambientes da sala de estar, aboletadas no sofá defronte ao telão gigante que reproduz as fotos da viagem. Se fosse ela, pobre e curiosa, uma vez naqueles lugares iria querer saber tudo a respeito das coisas, os mínimos detalhes. Às vezes se posiciona num canto da sala, meio escondida, como se estivesse ali aguardando qualquer instrução ou pedido, me alcança isso, traz aquilo, pega mais cerveja, essas coisas. Sempre presente e ao mesmo tempo invisível na prontidão silenciosa. À espera do momento em que surgirão as informações tão aguardadas, mas elas nunca vêm, parece que seu Antoninho e dona Leocádia e todos casais de amigos viajam a tirar retratos nos lugares históricos ou famosos sobre os quais nada sabem. E voltam cheios de compras, malas e pacotes atulhados de roupa, bugiganga eletrônica e novidades logo abandonadas no armário das tralhas em desuso.
Depois do almoço a porca torceu o rabo. Bate-boca por causa do sobrinho músico. Não deveria ter respondido na frente da visita, tão acostumada a concordar, mesmo em desacordo. Faz parte do ofício, para se manter na função. Tantas vieram e não se fixaram, cozinheiras, diaristas, até o jardineiro e o rapaz da piscina levaram tempo a firmar. Para conduzir bem a coisa, agora sabe, o jeito é levar em silêncio na frente dos patrões. No seu caso é tranquilo, ordenar as coisas e mandar nos outros, inclusive o motorista em alguns momentos, quando fica à disposição das compras e mandados. Geralmente aproveita a viagem no banco do carona, curtindo de madame a caminho do hipermercado predileto dos bacanas, tudo mais caro, sempre novinho, variedade de rótulos a escolher. Ele não gosta de falar do rapaz na frente da esposa, filho único da cunhada que morreu, brigaram outras vezes quando seu Antoninho fez comentários, aquelas coisas que diz sem pensar, bêbado geralmente. Cismou porque o rapaz é metido com essa gente de faculdade, universidade, sabe lá o que mais e o patrão andou dizendo certas coisas a respeito do moço, brigou com a dona Leocádia, ela não retrucou, daí que também sentiu medo, deus-o-livre, esse malandro cabeludo e barbudão, de repente sei lá, vai que fosse verdade, mas como sempre o seu Antoninho grita mais alto, não por malvado e sim por cacoete, talvez não consiga se desligar do trabalho, não é por mal que julga sem conhecer, apenas mania de juiz, acostumado a dizer as suas sentenças. Não é esse o nome daquela coisa que eles escrevem antes de bater o martelo? Então, o seu Antoninho tem sempre uma sentença na ponta de língua sobre todas as coisas e pessoas. Desde o primeiro dia, no instante em que o rapaz botou os pés aqui dentro, começaram os olhares enviesados, as indiretas, risadinhas, insinuações e também o apelido maldoso, para não dizer injusto. Mudinho. Onde já se viu? Pobre moço, a maior parte do tempo encerrado no quarto, dedilhando o violão naqueles estudos intermináveis, coisa mais linda de se ouvir, parece música de anjo, se existem mesmo lá em cima, decerto haverão de tocar essas melodias que nos levam com a alma e nos arrastam àquele mundo de sonho abandonado à saudade das coisas que não temos palavra e resistem ainda que haja passado o tempo de uma vida, de todas as vidas de todos os homens até o último dia da criação. Foi isso que tentou explicar a seu Antoninho e ao amigo dele, o rapaz não é mudinho, ao contrário, nesta casa ninguém falou mais do que ele durante todo o período em que esteve hospedado, problema é que falava o tempo inteiro, sem parar ele nos dizia coisas que não poderiam ser compreendidas por ouvinte desatento, porque ele passava o tempo inteiro conversando com as pessoas, ninguém ouvia, mas ele falava aos berros, com a alma e o espírito na linguagem que poucos entendem.
TEXTO EM EDIÇÃO, obrigado.
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