CURURU



Releio o primeiro tomo da obra “Em busca do tempo perdido” para reencontrar um Proust abastado, criança frágil, paparicada na França de fins do século dezenove. Estranho para quem é acostumado aos nossos memorialistas. “Oh! que saudades que tenho. Da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais!” Para além dos “oito anos” de Casimiro de Abreu, me identifico com outros meninos. O Grapiúna, de Jorge Amado. No Espelho, o Fernando Sabino. No Engenho, José Lins do Rêgo. Voei ao lado do Fernandinho, pelas mãos de Erico Verissimo, em “As aventuras do Avião Vermelho”, o primeiro livro a me cativar, recém alfabetizado e atento às ilustrações de Vera Muccillo na clássica versão da Editora Globo de Porto Alegre. 


Na mesma época as crianças ouviam disquinhos coloridos. Fantásticas narrativas ilustradas com rica sonoplastia. Adaptações fonográficas que nos embalavam em aventuras de gigantes ciclópicos, princesas em mil e uma noites, tapetes voadores, quarenta ladrões, sete anões, alvíssimas donzelas envenenadas, beldades adormecidas, caçadores de lobo selvagem, vovozinhas indefesas, meninas solitárias percorrendo estreitas veredas em florestas sombrias, abismos, sendas obscuras, bruxas em contos horripilantes, geralmente os melhores, superando as lições de moral nas fábulas de inseto e bicho falante. Grandes clássicos da literatura infantil de todos os tempos. Nos anos setenta do século vinte aquelas histórias eram inocentes, o Negrinho do Pastoreio vinha nos acudir quando o chamávamos em reza para ajudar na busca do estimado que perdíamos pelo caminho, não surgira quem as acusasse pelo insuspeito tom de crueldade, justamente o que nos fazia vibrar, porque ao final os heróis triunfavam, estropiados como Rocky Balboa no minuto derradeiro da última luta, em cena de agonia interminável, quando o garanhão italiano é surrado como Cristo na via sacra e retorna do canto sombrio no ringue, aonde fora subjugado às cordas, para anunciar o reino da bem-aventurança na luz eterna do deus boxeador que protege aos ítalo-americanos. 

Muito rico tudo isso, mas estou para contar a realidade de homens que foram criança noutro tempo, quando era possível cair no chão, ralar o joelho e se aprumar por conta, simulando tranquilidade no momento de retornar a casa, rezando para não ser descoberto, senão era castigo ou carraspana, beliscão e croque, na melhor das hipóteses. Um companheiro de infância, vi com estes olhos, chegou a apanhar de cinto. Mais bizarro, coitado, antes das surras, obrigado a buscar a tira em couro de fivela grossa no armário do progenitor. Entregava o instrumento nas mãos do algoz e sofria a humilhação do vergaste com plateia. Os amiguinhos impotentes. Apesar de tudo, vingou médico. Bem de vida, o pai de família. Ainda hoje prescindo de suas habilidades terapêuticas. Nalgumas coisas evito riscos desnecessários, o seguro morreu de velho e aquelas surras foram descontadas no irmão mais novo. Tratava a mãe aos gritos, ameaçava agredir, não duvido que tenha agido covardemente, o ingrato. Jeckyll. 





A partir deste ponto, o que passo a narrar remonta ao finalzinho dos anos setenta, um tórrido janeiro na localidade de São Marcos, Uruguaiana, à beira do rio Uruguai. No outro lado o solo argentino, visível a olho nu e mais nítido se aproximado a binóculo. As barrancas, os capões e a mata fechada, pedaços de campo aberto, chalanas de pescador amarradas às margens. De vez em quando, homens fardados em barcos metálicos cinza-chumbo, numerados em letras pretas, uma metralhadora de grosso calibre apoiada em tripé giratório protegido por uma couraça na casamata de proa. Ao lado o pequeno mastro, envergado, revoluto com o tremulante pavilhão azul e branco. Para mim, apenas patrulhas em movimento cotidiano, sequer desconfiava que o país vizinho amargava anos de chumbo, mas conhecia um pouco da nossa realidade, o tanto quanto era possível a uma criança, por causa das discussões em família. Meu tio oficial do Exército Brasileiro e o avô materno uma liderança do antigo partidão. O “Urutau Vermelho”, marcado na paleta desde que retornara do exílio, cassado em seus direitos fundamentais e até expropriado, uma vez que perdera a titularidade de um cartório de registro de imóveis cuja matrícula lhe fora assegurada no governo Getúlio Vargas, por intermédio de Batista Luzardo, num daqueles emaranhados ideológicos paradoxais, embora não muito distantes do que enxergamos hoje, ou desde de sempre, nos bastidores da intrincada política brasileira, orgânica por fisiológica. 

A parentalha e os agregados organizavam memoráveis festas de Natal e réveillon, às vezes avançando os primeiros dias do ano, não raro o mês inteiro em atividades de toda ordem, desde simples pescarias de lambari a caniço ou rede malha fina, churrasqueadas de ovelha carneada no pátio e as complicadas operações logísticas rumo às fazendas de não sei quem, nas lonjuras de sei lá onde, estância adentro serpenteando trilhas. Locais estratégicos para sediar acampamentos-base, pesca embarcada e caça. Capincho, marreca, perdiz e toda a carne exótica que fosse possível derrubar a tiro. Minhas primeiras lições em alvo fixo, ou balouçante, aconteceram em fundas, atiradeiras, pistolas e espingardas de pressão, esta última em mola dupla. O melhor eram as carabinas vinte e dois, cápsulas deflagradas às escondidas dos adultos, sob a cumplicidade dos primos mais velhos, geralmente como suborno para comprar o meu silêncio. Às vezes, o inadvertido caçula dos netos homens presenciava alguma molecagem secreta, como apropriação indevida de equipamento de uso exclusivo. Deus o livre, pegar as coisas do velho sem permissão, mesmo que soubéssemos fazer uso racional e tivéssemos o máximo zelo. 

Aqueles eram tempos de pescarias noturnas, empreitadas que se tornavam exequíveis graças à queima de uma mistura de folhas secas de eucalipto e bosta seca de vaca. Fumegávamos o acampamento para afastar as nuvens de mosquito, de modo que a atividade deveria se prolongar enquanto houvesse insumo para alimentar o fogo. Na prática, terminado o “bostefom” e recolhidos os anzóis, ainda continuávamos à beira d’água porque os adultos não haviam bebido todas as cervejas acomodadas em isopores enormes, repletos de gelo. Álcool, e refrigerante nunca faltou, tampouco o lanchinho para beliscar. A coisa se arrastava até o amanhecer e as crianças precisavam encontrar o meio de combater os insetos, geralmente no interior dos automóveis com os vidros fechados e isso também não dava certo, pois sempre havia um primo gaiato que resolvia peidar ali dentro e todos saíam porta afora. Enojados, o engulho. 

Meu avô costumava se refugiar nos fundos do pátio, enfiado na meia-água de madeira com o telhadinho avançado que fazia as vezes de varanda. Lá dentro guardava as ferramentas e o material de pesca, facas campeiras, facas comando, facas de lâmina curva para os filés de peixe, facões, espada, ponta de baioneta, duas ou três espingardas em boas condições, acondicionadas em estojos de couro ou lona militar, cartucheiras de vários calibres e muitos vidros bizarros, espalhados por todos os lados, acomodados em prateleiras afixadas às paredes. Eu passava horas absorto naquela coleção de horrores. O enorme couro de sucuri estendido de fora a fora. Animais empalhados, potes de vidro com cobras, escorpiões e aranhas conservados em formol. Cabeças de surubim, piranha seca, arcadas de tubarão, pé de coelho, guizo de cascavel, lascas de pedras com fósseis de plantas e bichos esquisitos, pele de onça, armário de tralhas, uma escrivaninha empoeirada e o baú inescrutável. Fotografias amareladas, presas com fita adesiva ou ajustadas nas frestas entre os encaixes das paredes. Imagens de locais que eu admirava com ar de encantamento, paisagens de cachoeiras e rios caudalosos, homens brancos posando ao lado de índios, caçadores paramentados, gaúchos a cavalo e pescadores em acampamentos às margens de lagoas, igarapés, terrenos pantanosos. Tropa de milícia numa gare de estação férrea, meu avô em armas e trajes revolucionários e a vó com uma expressão de incredulidade, miudinha a ponto de ficar ainda menor do que já era, apavorada com a cara de tacho. No final da vida, não ouso julgá-la, aproveitava uma ou outra oportunidade e espezinhava o velho com a amarga tirada que resumia numa frase os altos e baixos do casal, advindos das convicções políticas sustentadas a maior parte do tempo por meu avô. “Aquelas bobagens do Ulisses”. Apesar da evidente rusga ideológica, meu tio militar e o velho comunista encontraram o meio termo da boa convivência no gosto em comum pelas pescarias e caçadas. De vez em quando aconteciam os arranca-rabos, esculacho em altos brados, minha tia chorando num canto, a vó noutro e os desafetos encerrados em silêncio mútuo que era brevíssimo, até o fim do porre. No dia seguinte despertavam renovados, como se nada houvesse acontecido. 



Nunca fui dedo-duro, leva-e-traz do anjo mau. Entretanto, as primeiras impressões sobre a realidade crua do mundo, depreendi de lições que tomei com os primos mais velhos e meu irmão. Dentro da minha própria casa, aqueles que deveriam proteger e conduzir, apontar o caminho seguro, foram os primeiros a demonstrar na prática o que eu iria entender bem mais tarde, na vida adulta. O evangelho segundo Satanael, irmão de Jesus: não se pode esperar muita coisa de quase ninguém. Sobrevivi a engodos mercantis, trapaça em jogos de carta ou tabuleiro, geralmente eles mudavam as regras conforme lhes aprouvesse, e tornavam ao regulamento oficial com incrível desfaçatez, bastava surgir no ambiente lúdico alguém mais velho interessado em acompanhar de perto o joguinho dos meninos. Os grandes apreciavam torturar os pequenos, na ausência dos que eram ainda maiores. Sevícias, covardias físicas e morais. A mais frequente, espécie de combinação maçônica, consistia em fazer algo errado e colocar a culpa sempre no pequeno, confirmando a perfídia em uníssono, numa eventual inquirição adulta. 

Tive sorte. Os primos da “primeira fornada”, enquanto eu era criança e outros adolescentes como meu irmão, lá pelas tantas resolveram me proteger, entregando aos respectivos pais o verdadeiro boletim de ocorrências da família. Tudo mudou, a partir de então. Também me vinguei e fui malvado, embora miúdo e fraco, porém ardiloso e indócil como um vira-latas que avança por trás e mordisca a batata da perna sem o alarme do latido. Equívocos resultam da ausência de explicações, detalhes omitidos por displicência ou falta de didática. Haja tato para construir uma linguagem capaz de entusiasmar o imaginário do inocente, aquilo que se aprende e nunca esquece. 

Naquele entardecer, ao cruzarmos um campo para acessar o pesqueiro, os adultos seguiam de camionete pela estrada e o vô liderava a tropa de netos pelo atalho, topei a presa ideal para finalmente estrear no clube da carnificina. Seria uma oportunidade. A tradição familiar. Hábeis pescadores, peritos em rastros, caçadores impiedosos. Nosso mundo me autorizava a prosseguir. No juízo de menino aos oito anos, acostumado à morte matada de qualquer animal voador, nadador ou sob patas, não houve dúvida se precisava autorização para erguer uma pedra monumental, absurda frente à capacidade de tração dos meus bracinhos finos, carregar alguns metros e largar ruidosamente sobre um enorme sapo cururu, quase à beira do rio. O bicho arriou, achatado na lápide, esbugalhou os olhos e soltou um breve ronco. Sofrer as agruras do mártir pequerrucho e saber que a morte de animais era corriqueira entre nós, guerreiros pescadores e caçadores, deveria justificar meu ato, embora naquela idade eu não tivesse a capacidade de formular com essa verve. A criança reage aos estímulos oferecidos pelos adultos, mas também reproduz suas atitudes, bons e maus exemplos. Ainda assim, meu avô não teve escrúpulo ou discernimento, pois imediatamente me passou uma descompostura em altos brados, furibundo. “Animal, estúpido! Vou contar a tua mãe e ela vai te deixar de castigo sem tevê. O pobre bichinho não te faz nada”. 

Fonte: anacaldatto.blogspot.com.br


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