O tempo, o cenário e duas obras que conversam
Luiz Paulo Faccioli, escritor
Os suíços tinham a fama de grandes relojoeiros; os britânicos, da obsessão pela pontualidade. Não sei se essas ideias ainda vigoram numa época em que as idiossincrasias nacionais se diluem e se mesclam para tornar o mundo a cada dia mais homogeneizado. Mas a precisão com que se marca a passagem do tempo continua sendo uma questão fundamental para a humanidade, ainda que nada seja mais incontrolável do que ele, o tempo, em sua obstinada marcha. Nas horas semimortas de uma madrugada insone, o marcador digital dos relógios atuais pode causar o mesmo desconforto do tique-taque de outrora – e há quem jure ouvir cada troca de minutos nessas novas e silenciosas tecnologias.
Lambuja começa na madrugada de um dia para terminar na mesma hora do dia seguinte. A trama se desenrola em exatas vinte e quatro horas da vida de um atormentado personagem, e Caco Belmonte usa um hipotético relógio para delimitar os capítulos. O conflito, que vai aos poucos revelar um inequívoco viés machadiano, se estabelece de pronto num pesadelo seguido de insônia. Jornalista e escritor, Jorge está desempregado, endividado, mas tem grandes chances de ser efetivado no gabinete de uma deputada a quem presta serviços temporários. Como a desgraça nunca se compõe de um único item, Jorge é separado, enfrenta problemas familiares e sofre de bloqueio criativo, o estado mais comum de qualquer escritor. Sua vida amorosa atual também periclita. A esses dilemas somam-se as comezinhas atribulações cotidianas: o trânsito, a chuva, os desencontros daqueles que podem lhe salvar da miséria. Pronto, as vinte e quatro horas, que na madrugada custavam a passar, vão se tornando insuficientes para acomodar tanta preocupação.
O tempo em Lambuja não se expande a ponto de produzir um dia artificialmente interminável, como no monumental Ulysses de Joyce, tampouco se retrai com rapidez atabalhoada, o que vemos em tantas narrativas contemporâneas construídas sem paciência ou arte. A despeito de flashbacks e de trocas de narrador, opções que interferem na percepção temporal do leitor, a história segue um ritmo de precisão, eu diria, suíça. O desespero, a urgência ou a esperança de Jorge não conseguem interferir na inexorável cadência do tempo, resultando numa tensão a que a narrativa deve grande parte de sua força. Exatamente como na vida.
A Porto Alegre dos dias atuais deixa de ser apenas o cenário de Lambuja, mas funciona quase como um personagem, dada a minúcia com que é descrita nos trajetos que Jorge faz em sua peregrinação de um único dia, e sobretudo pela função que merece na trama. E neste ponto já não é possível deixar de referir o óbvio diálogo com uma obra icônica da literatura sul-rio-grandense: voltemos oitenta anos no tempo e olhemos para uma Porto Alegre sem dúvida mais singela do que esta que conhecemos hoje. A saga do Naziazeno de Dyonélio Machado, num dia em que a cidade não fazia jus à alegria que traz em seu nome, ao menos para o personagem, começa com sua preocupação em conseguir o suficiente para saldar a dívida com o leiteiro. O dia de Jorge tem um início igualmente prosaico, apenas agora mais adequado ao perfil de um jornalista do século 21 numa cidade maior e mais confusa do que essa em que viveu Naziazeno. É claro que a importância dos conflitos é proporcional ao que eles representam a seus atores, e a ficção não raro vale-se de um conflito aparentemente menor para chegar a um subterrâneo mais grave e mais complexo.
Se faço questão de salientar aqui os pontos em comum entre as duas novelas é porque talvez a maior virtude de Lambuja decorra desse belo diálogo. Tenho certeza de que, ao fechar o livro, o leitor vai se sentir compelido a voltar a “Os Ratos” e reencontrar nele uma obra-prima, agora com uma nova referência. A Caco Belmonte devemos uma excelente novela e uma oportuníssima redescoberta.
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