TiNTIM por TINTiM


Personagens ressurgem, histórias de outros tempos ganham novos contornos. Assimilo esse material bruto e o processo na criatividade do artista, fazendo emergir um novo contexto. Ficcional, mas ainda real, caso bem-sucedido. Essas modulações de tom exigidas à adaptação emprestam a verossimilhança perseguida pelo “demiurgo” que, eventualmente, transmite confiança ao leitor, ou espectador, que responde com empatia à mensagem.  A mesma sequência, captada sem o viés literário do escritor, ou longe da imagética dos roteiristas e diretores de cinema, seria um quadro fugaz na imensidão da individualidade coletiva. O paradoxo do deserto povoado. Até onde a vista alcança, tempestades de areia. Pretensioso, soprar em direção contrária.

O que vou narrar adiante, visto pelo desatento, seria apenas a miséria sem nome, avaliada de passagem com olhos curiosos e sincera empatia, comiseração instantânea de corações pétreos, endurecidos pelo hábito da observação cotidiana de tragédias distantes, impessoais e descartáveis, embaladas pela voracidade urgente da informação atirada às massas insaciáveis. A notícia de ontem é velha, alguns dramas persistem, embora invisíveis no dia seguinte, ou pouco mais do que isso. Gastar menos é urgência. Na classe média, quem tem dinheiro economiza. O remediado, do tantinho faz milagre. A droga e a geladeira nos levam à periferia, não necessariamente nessa ordem, depende de cada um. Mas calma, vou explicar como acontece, tintim por tintim. Motivos solenes nos conduzem por caminhos mal frequentados. Final de mês nos telefonam para cobrar as dívidas materiais. Quase ninguém nos intima no Cartório da Consciência, o imaterial não tem valor. São cretinas, as palavras também. Apupo parece aplauso, mas te vaiam. Ovacionado soa como se estivessem querendo arrancar o teu fígado, mas te adoram. 

Um amigo foi empresário no ramo da alimentação, vendia lanches, especializado em baurus. Hoje atua em segmento menos sacrificado. Resguardou segredos, abertas as portas de segunda a segunda. Jamais revelou a procedência das carnes bovinas suculentas, desmanchavam na boca. Toque de midas com sabor de pobreza, o insumo vinha de bairro periférico, problemático por violento, distante mais de quinze quilômetros, mas com açougues que vendiam sem a margem de lucro exorbitante das casas de carne dos bairros nobres, próximos ao Centro Histórico de Porto Alegre. Muitos dos moradores de residências de luxo à beira do Guaíba, nos condomínios e nobres loteamentos das zonas Sul e Extremo-Sul, costumam buscar cerveja e carne mais em conta nos comércios dos prédios à volta dos condomínios na Cohab Cavalhada. Bolso esvaído, a premência do momento. Da mesma forma economizo. Conveniente poupar. O níquel tem valor, agregado a outros níqueis. 

No bairro em que resido, o Cristal, a meio caminho do Wall Mart Barra Shopping Sul, existe um supermercado próximo a minha casa, não das grandes redes, porém em cadeia com outros medianos, individualmente não teriam potencial, mas sob bandeira comum eles fazem grandes compras e anunciam ofertas nas rádios populares. Percorro a pé esse trajeto, costumo atalhar pela comunidade no entorno da Avenida Divisa, local em obras que se iniciaram antes da Copa 2014 e, findo o mundial de seleções deste ano, seguem inconclusas e sem previsão de término. Então eu vou a pé até o hipermercado, em detrimento do conforto, sendo a referida comunidade o ponto exato aonde existe um armazém tradicional, desses que vendem sortido, incluindo cerveja em lata e leite integral UHT a preços convidativos. Desconheço a procedência, não estou em condições financeiras de colocá-la em xeque. O primeiro alimento do homem é artigo essencial, café e papel higiênico também, sempre os manteremos à mão, ou estaremos angustiados. 

No entorno do referido estabelecimento, secos e molhados com borrachos escorados ao balcão, flagrante riqueza antropológica. Tipos humanos que habitam ou circulam pelas vilas urbanas e periféricas da capital. Quem viu algumas, conhece quase todas. No estado dentro do estado, códigos tácitos de convivência e leis próprias se replicam. A prática não diverge do que acontece no mundo institucionalizado: manda quem pode. E ali dentro o proprietário atende com a caneta presa atrás duma orelha, calcula no verso de papéis que embalam pacotes de cigarros nacionais ou paraguaios, serve tragos, alcança produtos mantidos longe da clientela, pois haveria quem os roubasse, se estivessem ao alcance das mãos e à mercê da ocasião. Quando cheguei, percebi o ajuntamento na calçada defronte. O homem caído e as pessoas agitadas. Deboche, reproche, nenhuma vontade de ajudar. “A mina deu um rapa e chutou a cara dele. Bem feito, tomara que tenha morrido. Coisa ruim não morre fácil. Deixa quieto, esse traste é o Baiano. Alguém foi chamar o pessoal na casa dele”. 

Ouvi o nome do ser humano sobre quem formulavam as frases, olhei a figura atirada e fiz a imediata associação que remete ao início deste arrazoado, quando aludi a personagens ressurgidos em novos contextos. Cotidianamente, estamos a um passo do mau passo. Titubeamos e somos arrastados à trilha da idiotia. Trocando as bolas, fazemos do vício uma virtude.  Algumas das melhores literaturas surgem de nossa dor, ou quando nos despimos de nós mesmos e nos colocamos na pele do outro. Não é para qualquer um. Escrever do umbigo feliz é simples, cavoucar nas próprias entranhas e do mundo à volta, trabalho para cirurgiões da alma. O Baiano que conheci, passados mais de vinte anos, me transporta ao tempo de juventude, quando experimentava sensações e frequentava lugares malditos. Ele era ajudante de ordens, misto de guarda-costas e braço direito do falecido traficante negrão Adilson, ex-policial militar que enveredou na senda criminosa e mantinha um estabelecimento, desses bares gradeados que só admitem o ingresso de conhecidos por meio de senha. Ali traficava sob o disfarce das cervejas e fichas para mesas de sinuca.  Poucos sabem sobre Bill, um dos fundadores do A.A, mas ele afirma que tomou LSD depois que parou de beber. Longevos veteranos dos grupos mais antigos sequer desconfiam. Caso soubessem, talvez atribuíssem falsidade à informação oriunda do pioneiro, em relato de punho. O horizonte é o mesmo para todos, cores e perspectivas variam por motivos individuais. Escritor, um “sniper” do alheio com o detalhe ampliado à distância. Não existe ficcionista mais capaz, em termos de criatividade, do que as circunstâncias e situações oferecidas pelo cotidiano. Tudo é a capacidade de reproduzir esses conteúdos de forma literária. Muitos conseguem. Desconheço autor bem-sucedido que não seja um paciente observador.

Anos 70, início dos 80. Eu lembro que pobres andarilhos batiam às portas e pediam copo d'água, bolacha ou pão com manteiga, os mais confiantes. Eram atendidos, ou escutavam a senha negativa - "Não tem pão velho" - gritada das janelas e basculantes (antes de popularizar o olho-mágico, existiam as portas com caixilhos e dobradiças, vidro fosco para espiar e abrir). Hoje, nem chegam próximo às portas, grades e guaritas impedem a aproximação. Mas ainda deixamos o lixo para revirar, se vierem no dia correto, porque até o descarte tem regramento. E a guerra segue, paciência é virtude do sitiante. Lá dentro eles não enxergam, mas os sapadores trabalham. Vão entrar pelo túnel. Nosso problema é egoísmo. Queria ser bom o tempo inteiro, gostaria de ser justo, mas os limites da minha ética e bom-mocismo terminam nas fronteiras da fome. Do outro lado é a mendicância. Pensando alto, voo baixo para sair do aquário. De vez em quando, se foder um pouco é muito bom para o poeta e o prosador. Um autor na maciota, estabilizado e tranquilo, nem sempre escreve o fino extraordinário. Acho que o fenômeno ocorre porque, bolso cheio e grana sobrando, a mente dedica maior tempo às coisinhas boas da vida. Tese baseada em relato de colegas e experiência. O que é lixo cultural? Não cerro fileira com aqueles que validam os conteúdos de determinadas letras de música. Abusivas, machistas, apologia ao tráfico, ostentação de riqueza. Então, como posso ser a favor da liberdade de expressão, se aqui me arvoro direitos de impor limites? Ah, mas tem a ética. Sim, ética de quem, de qual ponto-de-vista? Sou eu, então, quem proclama os ditames da moralidade? Me tirem dessa cruz.

Convivemos pacificamente com o legal imoral. Aquilo que não preciso, mas quero receber assim mesmo, porque tenho direito. Ou ainda: aquilo que me constrange ao receber e justifico o benefício com a alegação "não fui eu quem fez a Lei". Temos que pensar sobre essas coisas e começo por mim. Falam em pós-verdades, termo recente e pouco conhecido, mas todos sabem o significado, gostamos de praticar às vezes, sempre o fizemos, porém com outros nomes. É bem fácil entender: pós-verdade é quando decidimos que as coisas são do jeito que desejamos, e não do jeito que realmente são de fato. E vêm distorcidas pela visão de mundo dos outros, geralmente nossos antagonistas. Tudo vem goela abaixo. As crianças de hoje, como as de ontem, ainda nascem torcedoras de futebol. Os pais as recebem com a decisão tomada, desde o ventre já estavam adquirindo itens com as cores de seus clubes prediletos. Com a pátria de chuteiras, tem sempre alguém que extrapola o grito e começa a zurrar.

Ao contrário do conto do mestre Dalton Trevisan, aquele corpo nominado Baiano, ao invés de Dario, o personagem que tombou na rua e, aos poucos, teve roubados seus pertences, nada oferecia à subtração do alheio. Em verdade, desconheço se veio a óbito. Comprei o leite mais barato e parti. “Piedade de Leão”, diria Clarisse Lispector. Mas o cachorro é amigo de quem o alimenta. O homem não é amigo de quase ninguém, embora ame e cuide dos seus animais de estimação. Confirmei o entendimento sombrio ao ouvir uma senhorinha, em meio aos curiosos, sádica e saciada com a desgraça miserável do outro, que não considera irmão. “Borracho fodido podre de bêbado chapado de tudo que tem direito e esteja ao alcance do bolso na mão grande ligeira do safado incorrigível”. Ela gritou, dirigindo-se a um dos cachorros que vieram consigo, soltos pela avenida, acostumados a perambular. O cusco de rabo abanando correu para cheirar a bunda do homem atirado ao léu, caído com a calça de moletom meio arriada, as cuecas também, deixando uma nesga do velho “cofre” ao relento, vergonha exposta para coroar a decrepitude dos caídos e a sordidez das plateias. “Chispa, raspa! Não vai me lamber esse lixo”.

Precisamos nos reinventar como gente. Não sei em que momento vai acontecer, o mundo engatinha em processo renovatório, o caldeirão ferve e nós borbulhamos. Imperativo jogar fora os entulhos ideológico e dogmático. Não temos o melhor dos mundos, mas é o único que existe para vivermos. Se fosse ideal, não haveria tanta desigualdade entre pessoas do mesmo país e entre os países entre si. E os que defendem a desigualdade, porque as pessoas não são iguais, geralmente vieram ao planeta com a cama feita para o sono tranquilo. Nosso motor bate biela quando as medidas internas milimétricas estão desproporcionais e precisam ser calibradas. Defeito de fábrica, as engrenagens acabam forçando o eixo excêntrico até entortar. Recomenda-se retífica e talvez não resolva. Somos canalizadores, verter esgoto é opção.  Eu aprendo, acima de tudo. Quero ser humilde o tempo inteiro, mas nem sempre consigo. Quero ser justo, sem a falsa moralidade do imparcial utópico. Quero ser mais espírito, mas a matéria me puxa pra baixo. Estou vivo, afinal. 

Não me incomoda a pecha de tolo obscurantista. Quando falam em depressão, para além do que é científico e reconhecido, imediatamente acende uma luz de alerta em mim. E pisca, pisca, pisca, "dizendo" o espírito quer ajuda - o espírito pede atenção - o espírito quer ser reconhecido espírito. Digamos que eu fosse dos que rejeitam. Validaria coisas simples como cócega, coceira, fome, vontade de mijar, fazer sexo ou cocô, além de sentimentos (rancor, alegria, tristeza). Se nada existe, senão em nós mesmos - inominável, imaterial, imponderável, intangível - por qual motivo não saio enlouquecido, sem moral ou fingindo moralidade, vendendo deus e a mãe? O que segura quem não acredita em nada e anda na linha? De onde surge a ética que faz boa parte das pessoas respeitar as outras, ainda que sejam constantemente vilipendiadas e enganadas pelos que deveriam protege-las e conduzi-las? É o medo da punição? Temos coragem de agir errado e não o fazemos por vergonha. Eventualmente, seríamos apanhados. 

Antigamente, bem antes do muito antigo, e mesmo do vetusto, as pessoas reclamavam da vida com um sonoro “benzadeus”. Hoje piorou de tal forma que é praticamente impossível o lamento sem o uso de nomes impronunciáveis, geralmente mais de um, no mínimo três. No século vinte, a mania japonesa de tirar retratos era motivo de chacota. Neste início de século vinte e um, todos somos “japoneses” e a piada perdeu a graça. Alienado, dizíamos de quem não queria ouvir falar em política. Agora inverteu e, quanto mais ideologia, maior a cegueira e o isolamento. Salário parcelado? Dizem para achar normal, poderia ser o desemprego. Desemprego? Agradeça, poderia ser a morte. No século passado, quando fui criança, professores e pais sensatos nos alertavam para tratar a todos igualmente e evitar as “panelinhas”, coisa de gente maldosa, acostumada a olhar o próprio umbigo e cagar para os outros. Eles mentiram, ou ensinaram errado. O mundo ainda pertence às panelas e o que sonhamos está a caminho, para quem vier depois e muito depois de nós. Façamos a nossa parte. 




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