IRMÃOS GÊMEOS - 1992


Reprodução de conto original, escrito em agosto de 1992.

IRMÃOS GÊMEOS (CONTEXTO HISTÓRICO)
Do texto que segue, o ano era 1991. Eu me inscrevi na seleção de candidatos para a Oficina de Criação Literária da PUCRS-RS, ministrada pelo generoso Luiz Antonio de Assis Brasil. Certame difícil para um rapaz de 19 anos, apesar de ávido leitor e redator inusitado, considerando a vez em que o meu pai fora chamado na escola por suposto plágio apresentado em redação, mas na verdade fora escrito de punho, ele testemunhara o ato e deu fé, passou uma descompostura na professora e no tiozinho do Serviço de Orientação Educacional (SOE), mas isso é outra história. Então, junto com a oficina, verdadeiro liceu que me levou à paixão consumada, o amor pelo estudo de matéria literária, a palavra e os livros, a construção das obras, garimpo e ourivesaria, também ingressei mediante vestibular na Famecos (PUCRS). Era apontada como uma das melhores faculdades de comunicação do país, aferida pelo ranking da Playboy que, como sabemos, sempre foi publicação conceituada na área educacional das ciências humanas, especializada em ensino superior calipígio e pesquisa de reentrâncias. À época, vivíamos o impeachment do ex-presidente Collor, que é o pano de fundo desta narrativa que explora o antagonismo exacerbado entre irmãos. Exatamente o que estamos vivendo hoje, passados mais de 25 anos. Descontados a ingenuidade e o despreparo do autor, até que não está nada mal para um neófito. Mais interessante do que, modéstia à parte, muito adulto que hoje anda faceiro com a “chancela” de escritor maduro. Recomendo a mim, com gracejos, pedindo boa-vontade no entendimento da leitura. 


IRMÃOS GÊMEOS 
Sete horas. Preciso levantar. Tenho preguiça. Quero sair da cama. Hoje é o meu aniversário. Nunca consigo dormir até tarde nesse dia, mesmo porque sempre trabalho.

Faço minhas abluções e olho para o chuveiro, mas não tenho coragem de ficar nu e encarar o jato d’água. Visto a mesma roupa de ontem e me dirijo para a cozinha. Esquento um café azedo e faço dois ovos cozidos, enquanto leio por cima as manchetes do jornal que tomo emprestado ao vizinho. Antes de sair, ponho por baixo da porta do síndico os atrasados referentes ao condomínio. Lá fora o sol meio que se acanha, coberto pela cerração que já abandona os pontos mais altos da cidade. Ganho a rua e sigo em direção ao ponto de ônibus. Um carro passa por mim, buzina, o carona grita alguma coisa que soa feito um olá, mas eu não respondo, e tento lembrar de onde nos conhecemos. Dentro do ônibus me encontro com o vizinho, ele quer saber se também sou assinante do jornal. Digo que não, ele pragueja contra o mundo, e só então me lembro que esqueci de devolver-lhe o tabloide sem, no entanto, ler minha matéria sobre a própolis das abelhas.

São oito horas. Para minha surpresa, uma boa alma acaba de bater o meu cartão-ponto, já faz cinco minutos. Passo ao largo da sala do editor-chefe. Vou para o bar, sem café não há notícia. Faço o pedido, sento junto ao balcão, e espero a máquina terminar de moer os grãos para o expresso. Sou tentado pelo pudim de leite que a proprietária do estabelecimento oferece de graça (ela quer opinião sobre a nova receita). Não gosto de doce, mas aceito. Dou a primeira colherada e, antes de levar à boca, ouço vozes de criança em uníssono numa gargalhada. Percebo que me espreitam por trás do biombo de vime, e tapam as bocas umas das outras. A dona da casa permanece alheia à balbúrdia infantil, me olha com cara de quem espera veredito. Levo o doce à boca e provo, digo que está ótimo. Mergulho a colher pela segunda vez, e vejo uma coisa marrom contrastando com o doce e a tigela branca. Curioso, divido o pudim em duas partes e, bem no fundo, descubro uma barata ainda viva, balançado as perninhas e agitando as antenas, como a protestar por terem lhe trazido de volta à vida. Meu estômago regurgita, quase não consigo conter a ânsia de vômito. Só então a dona da casa se apercebe do que está acontecendo, toma a tigela de minhas mãos, e vai ter com as crianças que correm para fora do bar dando gritinhos histéricos com as vozes esganiçadas. 

Saio dali e vou atrás do pauteiro na redação. Ele não está, mas há um recado para mim no afixado no quadro-mural. “Faça uma matéria sobre a produção de pêssegos do bairro Vila Nova”. Pêssegos na Vila Nova! Maldito o dia em que fui aceitar um trabalho no caderno rural.

 Já estava de saída quando soou o telefone. Além de mim, há mais três pessoas na sala: duas batendo à máquina de escrever, e uma terceira falando com alguém pelo rádio amador que transmite às unidades móveis do jornal. Pego o telefone e a ligação cai, antes que diga alô. Chama novamente, deixo tocar três vezes e depois atendo. Ouço a voz de um homem, parece ansioso. Pergunto se quer deixar recado, ele diz que não, mas volta atrás. Pede que eu anote um número, diz que no momento não pode falar, mas trata-se de um furo de reportagem. Fico de ligar por volta do meio-dia e me despeço. 

Faltam quinze minutos para as onze horas, e a primeira retranca da matéria já está pronta. Ainda tenho que passar no banco, antes de almoçar na casa de meus pais. Por mim, não iria, mas a minha mãe ficaria muito sentida e isso é a última coisa que eu desejo no dia do meu aniversario. Eu não suporto as atitudes do meu irmão, ele vive se pavoneando. Ainda mais agora, que é candidato a vereador. Age como se grande estadista fosse, mas no fundo é um cocô, não consegue fazer mais do que uns quinhentos votos. Meu pai é quem tem as maiores esperanças, sonha com o filho eleito na próxima eleição, apressa-se em amealhar votos.

Pego o ônibus perto do Mercado Público, rumo zona Sul da cidade. No caminho, somos interceptados por uma carreata que pede a renúncia do presidente. Os carros trazem bandeiras auriverdes com tarjas pretas e buzinam sem parar. Alguns mais exaltados vêm com o corpo para fora do carro e balançam grandes faixas com as siglas dos partidos de oposição. A senhora que está sentada a meu lado não consegue se conter, abre a janela e começa a gritar palavras de ordem. De repente as pessoas no ônibus gritam junto com ela, parece uma grande torcida organizada. Sinto um arrepio subindo pela espinha, e me descobri acrescentando frases àquela improvisada manifestação. Desço do coletivo e as pessoas me abanam como se fossemos velhos conhecidos. Fico tão empolgado com o piquete móvel, que acabo esquecendo de ir ao banco, e quando dou por mim, estou a duas quadras da casa de meus pais. São onze horas e trinta minutos.

Caminho pelas ruas que fizeram parte da minha infância, mas não identifico nenhuma fisionomia. Toco a campainha e espero. A empregada abre a porta e entro sem dizer nada. Cheio forte de comida, a mesma lasanha de todos os anos. Minha mãe parece um pouco mais velha, faz apenas seis meses que não a vejo. Ela me abraça com força e deseja feliz aniversário. Por cima de seus ombros posso vislumbrar meu pai, traz um pacote na mão e espera a sua vez de me cumprimentar. Apenas um abraço. Segundo ele, dois homens nunca se beijam. Ouço alguém que se aproxima, pelo alarido só pode ser meu irmão. Mal abro a porta, e minha cunhada me beija no rosto, bem perto da boca como de costume. Fico constrangido com essa situação, mas um dia ainda me acostumo, afinal não é de hoje que ela vem me tentando. Uma vez, teve a capacidade de ligar e queria a minha companhia à noite, porque só assim suportaria a ausência do meu irmão, que se encontrava viajando havia três semanas. Não fui, e desde então seus achaques têm sido cada vez mais frequentes. Às vezes, sinto medo de ficar a sós com ela. Na última, quase nos pegam em situação constrangedora. Por sorte, meu pai estava bêbado e pensou que eu fosse o outro gêmeo, mas foi por um triz. 

Antes do almoço meu pai oferece uísque. Sentado na sala, observo minha mãe às voltas com a comida, enquanto minha cunhada beberica o seu Campari e rói as unhas, sentada entre nós homens. Meu irmão quer saber se eu não preciso de dinheiro, digo que não e agradeço. Então, ele me oferece uns ternos que não lhe servem mais porque está gordo, e diz que eu deveria me vestir um pouco melhor. Olho para as minhas roupas, mas não consigo ver nada de errado com minha calça jeans e a velha jaqueta de couro preto desbotado.

Já passa do meio-dia. Vou para a salinha que o pai utiliza como gabinete, retiro a pequena agenda do bolso e começo a discar o número do informante, enquanto observo um quadro na parede.  É uma fotografia, aonde estamos e meu irmão aos dez anos; um com a camisa do Inter, outro com a do Grêmio. O telefone chama, reiteradas vezes. Ninguém atende. Penso em desligar e ouço alguém dizer alô. Reconheço a mesma voz de antes. Não sei por quem chamar, a única informação que tenho é o número do telefone.

- Sou do jornal. Me deram esse número ...
- Sim, é comigo mesmo – apressa-se a voz do outro lado.

“Um pão quente” prometeu o homem desconhecido. No jargão jornalístico de muito antes, significava um assunto palpitante e urgente, mais do que o furo de reportagem. Diz que é para eu estar em tal lugar, às oito e meia da noite. Recomenda discrição. Trata-se de homicídio. E ele mesmo vai me falar dos acontecimentos, tão logo nos encontrarmos no local indicado. Tento dizer que não sou repórter policial, sugiro a editoria de Polícia. Mas ele não quer saber, e diz que não faz diferença. Desligo o telefone, começo a achar impossível levá-lo a sério. Penso que tudo não passa de engodo, talvez trote de outros colegas, essas pegadinhas são muito comuns nas redações, e que provavelmente seria perda de tempo, correr atrás das loucuras do leitor-anônimo, seja quem for. Mas, se fosse verdade? No tresloucado, poderia estar a chance que espero faz tempo. Talvez, devesse conferir. Nunca se sabe.

Estou saindo do escritório, quando minha cunhada entra e fecha a porta atrás de si. Diz que deseja me dar os parabéns em particular. Avança para o meu lado. Enlaça o meu pescoço, tenta me beijar. Dou um passo atrás, tropeço numa cadeira. Desequilibrado, caio sentado. Ela vem no meu colo, esfrega os peitos em minha cara e diz umas coisas que nem acredito. Afasto-a para o lado, consigo me levantar, mas não se dá por vencida. Abro a porta, tento sair, ela se interpõe no caminho. Talvez tu mudes de ideia, diz. Hoje à noite, propõe, estará sozinha. Meu irmão viaja à tarde e só retorna amanhã.

No almoço, meu irmão faz digressões sobre o impeachment do presidente. Ele é contrário à CPI. “Absurdo que os parlamentares possam dispor de artifícios tão vis como a quebra do sigilo bancário”. Minha mãe, inocente, pergunta como vão as suas despesas de campanha. Ele engole em seco, diz que vão bem, mas não entra em detalhes. Os amigos ajudam, apressa-se em completar. De quais tipos, penso, mas não falo. Será o bicheiro, que lava o dinheiro do jogo nas empresas dele? Ou o sogro, notório contrabandista de agrotóxicos? Quase não tenho dúvidas, algo me diz que a campanha é fraude. Não sei o porquê, mas tenho o pressentimento. Meu irmão não é trigo limpo, acostumado a dar tapas e esconder a mão. Sorro que se faz de manso, ronda o galinheiro e, à socapa, devora as aves quando ciscam no quintal. Após o almoço, volto à redação e faço a outra retranca da matéria sobre os pêssegos. Depois vou para casa, sesteio o resto da tarde. Desperto, ainda não anoiteceu. Faço café, bebo, preencho o resto do tempo com leituras. Percorro algumas páginas de livros que vou retirando da estante, sem critério. Victor Hugo, Os trabalhadores do Mar. Vejo impresso o nome Dérruchette, então lembro a personagem Gilliatt, uma espécie de “MaGyver” do século dezenove. Largo o tomo encadernado em capa dura e apanho As Máximas e Mínimas do Barão de Itararé, que logo deito ao chão, e assim sucessivamente até que se forme uma pilha de livros folheados ao acaso. 

Às dezenove horas e cinquenta minutos eu saio de casa. Vou comer qualquer coisa no bar da esquina. Fico até oito e dez, depois saio caminhando em direção ao endereço recebido do informante. Não é longe. Texto o gravador e substituo o filme da máquina fotográfica. Essa sudorese é do nervosismo, acredito, porque me descubro pelas ruas feito autômato, esbarro nas pessoas e nem sou capaz de pedir desculpas. O local indicado é um depósito de distribuidora de bebidas, não vejo ninguém por perto. Tento encontrar uma entrada, a única é a porta de ferro, parece trancada por dentro. O prédio assemelha-se a um hangar de aviação. Lá dentro posso imaginar as montanhas de engradado sendo devoradas pelas empilhadeiras.  Encosto o ouvido na porta, procuro escutar alguma coisa. Não ouço nada. Sinto uma mão tocando em minhas costas, quase morro de susto. É um sujeito baixo e calvo. Pela barriga, calculo, faz uma década que não o próprio pau se a ajude de espelho.

- Você é o repórter? – pergunta, enquanto estende a mão gorda.

Seguro a manopla áspera e macia ao mesmo tempo. Me identifico, mas já sabe quem sou. Estamos atrasados, diz. E caminhamos uma certa distância, até o prédio que parece depósito, armazém de carga. Faz sinal para que eu fique tranquilo. Em instantes, esclarece, um carro virá nos apanhar. Fumamos.

Embarcamos no automóvel, que nos conduziu para um bairro próximo e paramos numa rua tranquila, defronte a uma casa de dois andares com cerca-viva defronte. Ele informa o que irá acontecer. Três homens, numa camionete Veraneio, irão atentar contra o dono do imóvel, no momento em que estiver chegando, daqui a instantes. 

Incrédulo e receoso, mas seguro, acendo outro cigarro. Pergunto ao careca que é a vítima, como se isso fosse normal no meu dia-a-dia, acompanhar assassinatos como cúmplice, porque repórter policial também não sou, apesar de cavoucar oportunidade para espaço e assunção. Quem não?

De repente um carro se aproxima, outro também. Param defronte à casa-alvo. Descem três homens do auto que parou atrás, um deles com a fisionomia familiar. Parece comigo, o rosto idêntico. O que aconteceu a seguir foi registrado em fotos, as imagens captei de longe. Nem todas ficaram nítidas. Eu tremi.

1) Vítima desce do carro
2) Caminha em direção ao portão de casa
3) Abre o portão
4) Surgem dois homens em segundo plano   
5) Sacam pistolas
6) Vítima esboça tentativa de reação armada
7) Vítima tomba, o crânio explodido

Esmorecido, nauseado, caminho sem direção. Nunca pensei que o outro fosse capaz de tamanha insanidade, mas também nunca duvidei, conhecendo a ele desde sempre, e talvez até antes. Rumo incerto, resolvo jogar fora o rolo fotográfico. E telefono a minha cunhada, aviso que estou indo. Já não sinto pudor, apenas desejo. 



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