NO DIA DA MENTIRA, REFLITO SOBRE A CRIAÇÃO LITERÁRIA




Tipo de narrador (foco narrativo)

O narrador é mais antigo do que a literatura. Com o passar do tempo, entretanto, foi adquirindo formas variadas, outros pontos de vista. E, se narrar é coisa muito antiga, também é antiga a reflexão sobre esse ato. Assim foi desde Platão e Aristóteles.

A questão da verossimilhança, proposta por Aristóteles, foi retomada diversas vezes, e pressupõe boa parte da teoria do foco narrativo. É quando começa o consciente desaparecimento do narrador, disfarçado numa terceira pessoa que se confunde com a primeira. Essa tendência verifica-se nos prefácios do escritor Henry James aos seus próprios livros, entre o final do século XIX e o início do XX.

Em 1921, Percy Lubbock, crítico inglês, analisa como é trabalhada a narração, que considera uma questão fundamental na construção romance. Da mesma forma que James, condena a interferência do narrador, e chega a radicalizar algumas opiniões, como, por exemplo, só considerar “arte de ficção” aquelas narrativas que não cometem tal indiscrição. É aqui que surge a distinção entre narrar (telling) e mostrar (showing), que tem a ver com a intervenção, ou não, do narrador.

As teorias de Lubbock, no entanto, logo foram superadas. Jean Pouillon, no livro “O tempo no Romance”, aborda uma teoria das visões da narrativa, sempre vinculadas à questão do tempo. Para ele, haveria três possibilidades na relação narrador-personagem: “a visão com”, “a visão por trás” e “a visão por fora”.

Segundo Pouillon, “a visão por trás” é quando o narrador domina tudo sobre a vida da personagem. É onisciente, pode-se dizer, já que sabe tudo sobre a ação e, principalmente, sobre as personagens. “Na visão com”, o narrador limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre o que acontece à volta. “Visão de fora”, finalmente, seria aquela em que se renuncia até mesmo ao saber da personagem, limitando-se à descrição dos acontecimentos.

Segundo Donaldo Schüler, in Teoria do Romance: “Nem todos os teóricos distinguem voz e perspectiva. Há, entretanto, vantagens em trata-las separadamente. Quanto à voz, o narrador pode eleger a primeira pessoa ou a terceira; quanto à perspectiva, o narrador pode penetrar na psique das personagens ou restringir-se a observar fisionomias, gestos, acompanhar os acontecimentos no seu efeito exterior. Vozes e perspectivas podem combinar-se das maneiras mais diversas nas mesma narrativa.”
Há que se distinguir a pessoa do autor da “instituição narrador”. Conforme Roland Barthes, em sua obra “Introdução à análise estrutural da narrativa”, entre autor e narrador se estabelece uma divisão e não se confundem de modo algum. O autor é uma pessoa física e psicológica, histórica e agente, sendo responsável pela criação, com personalidade, temperamento, gosto, moral, orientação estética e literária. O narrador é a atitude narradora do autor, perante o texto, através da adoção de uma conduta. Por isso, é comum que se faça confusão entre as duas figuras. O narrado, por sua vez, também está situado no plano da ficção, sendo moldado pelo narrador, não se confundindo com o leitor real ou ideal, que é aquele imaginado pelo autor.
De todas as teorias que discorrem sobre o narrador e como ele se posiciona frente ao texto, a tipologia de Norman Friedman parece sintetizar as anteriores, complementando-as; a distinção que faz entre cena e sumário também é um ponto característico, quando a atenção para a predominância da cena narrativa moderna e do sumário nas tradicionais. Predominância, no entanto, não pressupõe exclusividade. De modo que podemos encontrar cenas e sumários reunidos na mesma obra.
O narrador onisciente intruso é a primeira categoria proposta por Friedman. Caracteriza-se por possuir uma tendência ao sumário, sem, no entanto, descartar o uso de cenas. É o narrador que tem a liberdade de fazer tudo, colocando-se acima (por trás). Costuma ser intruso, tecendo comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres e a moral da personagem em ação, que podem ou não estar inseridos na história narrada. Muito comum no século XVIII e começo do XIX, caiu em desuso com o predomínio da neutralidade e a invenção do discurso indireto livro, por Fleubert.
A segunda categoria seria o narrador onisciente neutro, que fala em terceira pessoa. Também tende ao sumário, embora o uso de cenas seja muito comum, principalmente para os momentos de diálogo e ação. Este recurso também pode ocorrer de maneira intercalada com os outros dois, que são a onisciência seletiva e a onisciência múltipla.
Já o narrador testemunha (“eu” como testemunha) tem como principal característica a visão limitada. A história, desse ponto de vista, é sempre narrada por alguém que, como já diz o nome, testemunhou alguma coisa. Memorial de Aires, de Machado de Assis, e O nome da Rosa, de Umberto Eco, podem ser considerados dois exemplos característicos desse narrador.
Semelhante ao “eu testemunha” é o “eu protagonista” (narrador-protagonista), onde também não existe onisciência. O narrador não tem acesso ao estado mental das outras personagens. Pode servir-se de cenas e sumários, mas narra sempre a partir de um centro fixo e limitado, um único ponto de vista.
A onisciência seletiva múltipla (ou multisseletiva) é o quinto tipo adotado por Friedman. Nesse caso, não há propriamente a figura do narrador. A história vem através da mente das personagens, em função das impressões deixadas por fatos e pessoas. Em geral, esse tipo de narração exige uma predominância do uso de cenas:
Segundo Lígia Chiappini Moraes Leite: “Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos filtrados pela mente das personagens, detalhadamente, enquanto o narrador onisciente seletivo os resume depois de terem ocorrido. O que predomina, no caso da onisciência múltipla, como no caso da onisciência seletiva que vem logo a seguir, é o discurso indireto livre, enquanto na onisciência neutra o predomínio é do estilo indireto”.
Semelhante à anterior, a onisciência seletiva trata apenas de uma personagem de cada vez. É, como no caso do narrador-protagonista, limitada a um foco central. O ângulo é centralizado, e os canais limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem, sendo mostrados diretamente.
Diferente do que foi relacionado acima, o modo dramático limita as informações ao que as personagens falam ou fazem (como no teatro), intercalando-se com breves cenas, que servem para amarrar o diálogo. É uma técnica, no entanto, que não consegue se sustentar em textos longos. Talvez, em função disso, possamos arrolar alguns contos de Hemingway como exemplos dessa tipologia. Mais uma vez, no entanto, chamamos a atenção para o fato de que, numa obra de fôlego, vários tipos de narradores podem ser encontrados.
Já o narrador-câmera, que seria a última categoria apontada por Friedman, caracteriza-se por “excluir o autor”. Serve às narrativas que tentam transmitir flashes da realidade, como se fossem apanhados por uma câmera. Diferente, também, da análise mental, monólogo interior ou fluxo de consciência. Esses dois últimos representam, respectivamente, a maneira mais articulada e a menos articulada de expressar estados internos. 

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