AFRONTA

"Desbaratina, não dá pra ficar imune. Ao teu amor, que tem cheiro de coisa maluca"

Trecho de Lança-Perfume (Rita Lee - Roberto de Carvalho).


Por Chivona La Huevona*


Chego em casa, paro na frente da porta para revirar a bolsa e catar as chaves. Bate uma aflição: tomara que não haja ninguém. Para mim, chegar em casa sempre foi motivo de paz, final feliz, refúgio. Agora, passou a ser desconfortável. Meu espaço invadido.

Depois de derrubar metade das tralhas perdidas dentro da bolsa, pego a chave e abro a porta. Que alívio. Tudo escuro, ninguém em casa. Ele não está. Tropeço num par de botas sujas, esquecidas no meio do corredor de entrada.

Entro às pressas, desesperada para fazer xixi. Caio sentada na tampa toda mijada. Que nojo! Mesmo assim é um prêmio terminar o dia sem ter que enfrentar a cara de bunda daquele alcaide. Lavo bem as mãos, o rosto, me enxugo com a toalha úmida, fedorenta, embolada no canto da bancada. O imbecil usa o gancho ao lado da pia para pendurar as cuecas. De certo, quer que eu esfregue essas imundícies na cara. Debochado, relaxado. Sem respeito!

Pelo menos, estou à vontade. Posso me jogar na cama, espichar o corpo sem ninguém do lado. Bah! Impossível deitar com gente suja, cabeça sebosa, suor misturado com espuma de barbear. A coisa começou a degringolar quando o porco resolveu parar de tomar banho à noite, antes da cama.

Mijada, ensebada, com aquele cheiro ruim da toalha, vou para o banho. Ainda prefiro isso, a ter que me apressar e desocupar o banheiro. Basta eu trancar a porta e o abusado começa a bater, alegando a dor de barriga. Ligo o chuveiro quente, o jato forte relaxante, a água escorre em mim. De repente percebo: puta que o pariu! São pentelhos grudados no sabonete. Agora é uma afronta ....

Sobre a autora, Chivona La Huevona*
Abridor de velhas latas à deriva. Não gosto de usar as palavras orientador e facilitador. O vocábulo mais apropriado, que também evito, seria “professor”, mas sem a conotação “eu falo e te calas para ouvir”. Prefiro pensar em troca, uma fluência que acontece por estímulo, açulamento do espírito, baseado em teorias e técnicas consolidas na academia, reconhecidas em Teoria da Literatura. A diferença, única e exclusiva, é que percorri os caminhos e mostro os atalhos no mapa. O resto é trabalho e dedicação. Apenas o talento, a pegada anímica da verve autoral, não é o suficiente para a maioria, senão a meia dúzia que nasce Mozart ou Rimbaud, geniais ainda nos cueiros.

Alguns desses autores e autoras que me procuram, e estudamos juntos, por meio de oficina EAD que ministro, fazendo também o papel de editor para produções autorais surgidas ao longo do processo, e não apenas passar conteúdo e exercícios, não querem divulgar o trabalho resultante com os nomes próprios. Então, criamos pseudônimos. Não é oficina de arte terapia, embora haja o momento catártico da criação, em que o autor mergulha para dentro si, de onde faz emergir o que é formatado em ficção. Nada a ver com a imitação da realidade, apesar do dito consagrado. A arte não imita a vida, ela constrói o novo entendimento, baseado naquilo que o autor apreende em sua realidade. 

Dito isso, eis o texto de Chivona La Huevona, autora de Afronta.

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