DEZEMBRO



Conto inédito, escrito em maio de 2004.

Eu sei porque voltei. Foi por causa daquela tristeza sazonal, misto de solidão e nostalgia que sempre me assola no final do ano. Pensei muito antes daquele dia. Acreditei que a distância e o tempo não fariam tanta diferença na hora do reencontro. Julguei que o simples retorno fosse suficiente para reascender tudo aquilo que ficou para trás. Nenhuma mágoa, sentimento de culpa ou arrependimento. Apenas uma volta casual, como se tivesse ido na esquina comprar cigarros.

Nenhum tipo de contato, sequer telefonemas, durante todo aquele tempo. Houve uma vez, ano passado, mas não cheguei a falar com ninguém. Estacionei o carro numa rua perto do colégio da Bia e fiquei ali, escondido, esperando ela passar. Mas não a vi, depois telefonei e atendeu a voz desconhecida. O número havia sido trocado. 

Bia sempre foi parecida comigo. Era a predileta, nunca escondi. Das três filhas, sentia a maior saudade. Os carinhos da Vera faziam falta, desejo do nosso sexo, lembranças de nossa amizade e a maneira corajosa como encarava o meu trabalho. Que merda, o tempo não retrocede. Às vezes me pergunto um monte de coisas. Me questiono, como seriam nossas vidas se tivesse dado continuidade na carreira de piloto comercial. Me interrogo, procurando respostas. 

Ganância, cobiça desmesurada. Puta que o pariu, tínhamos uma vida confortável. Carros do ano, viagens por conta da companhia, crianças matriculadas em colégio particular, casa na praia, seguros de vida e saúde. Mas eu achava pouco, nunca estava satisfeito e sempre queria mais. Gastei dinheiro inexistente e precisei correr atrás do prejuízo. Confiei no Cardoso e isso foi a gota d’água. 

Eu não queria ter atirado. Nunca imaginei que aqueles caras não fossem árabes. Impossível saber que eram federais.  Ninguém morreu, não me sinto tão culpado. Jamais tive pudor em fazer os negócios; puxar o gatilho é que incomoda. A responsabilidade final é de quem puxa o gatilho. Como no futebol, quando o jogador chuta em gol e a bola toca no zagueiro antes de entrar. A súmula do juiz registra como autor do gol aquele que teve a intenção do chute. Por isso eu nunca me torturei. Russos, sauditas, espanhóis, norte-americanos. Se é comprador, ninguém pergunta a nacionalidade, apenas o dinheiro importa. 

Três anos e quatro meses. Lembro daquela noite. Saí de casa com a roupa do corpo, sem grana, apenas um resto da gasolina no tanque do Omega. Ele me ajudou a fugir para longe. Deu dinheiro, ajeitou esconderijos, os documentos falsos que ainda utilizo. Também dizia para não voltar, que a barra estava pesada, sempre sujeira, os homens de campana à volta. 

Cardoso assumir os negócios era consequência óbvia. O que não esperava, essa a grande surpresa, foi o encontrar morando lá em casa. Naquele dia, quando o enxerguei de longe, me arrependi de ter voltado. Antes tivesse ficado no Uruguai. Foi a pior véspera de Natal em toda a minha vida. Não fosse por ele, talvez ainda estivesse cumprindo pena em algum presídio no cafundó. Por isso, ainda não o matei. 

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