No deserto, todas as noites são geladas. Até onde a vista alcança, tempestades de areia. Pretensioso, soprar em direção contrária. A notícia de ontem é velha, alguns dramas persistem, embora invisíveis no dia seguinte, ou pouco mais do que isso. Visto pelo desatento, seria apenas a miséria sem nome, avaliada de passagem com olhos curiosos e sincera empatia, comiseração instantânea de corações pétreos, endurecidos pelo hábito da observação cotidiana de tragédias distantes, impessoais e descartáveis, embaladas pela voracidade urgente da informação atirada às massas insaciáveis.
O remediado, do tantinho faz milagre. No final de mês nos telefonam para cobrar as dívidas materiais. Quase ninguém nos intima no Cartório da Consciência, o imaterial não tem valor. São cretinas, as palavras também. Apupo parece aplauso, mas te vaiam. Ovacionado soa como se estivessem querendo arrancar o teu fígado, mas te adoram.
Ao contrário do conto do mestre Dalton Trevisan, aquele corpo identificado com nome e sobrenome, profissão, não teve nada subtraído, senão o mais importante, que é a dignidade. “Piedade de Leão”, diria Clarisse Lispector. Mas o cachorro é amigo de quem o alimenta. O homem não é amigo de quase ninguém, embora ame e cuide os seus animais de estimação.
Precisamos nos reinventar como gente. Não sei em que momento vai acontecer, o mundo engatinha em processo renovatório, o caldeirão ferve e nós borbulhamos. Imperativo jogar fora os entulhos ideológico e dogmático. Não temos o melhor dos mundos, mas é o único que existe para vivermos. Se fosse ideal, não haveria tanta desigualdade entre pessoas do mesmo país e entre os países entre si. E os que defendem a desigualdade, porque as pessoas não são iguais, geralmente vieram ao planeta com a cama feita para o sono tranquilo.
Nosso motor bate biela quando as medidas internas milimétricas estão desproporcionais e precisam ser calibradas. Defeito de fábrica, as engrenagens acabam forçando o eixo excêntrico até entortar. Recomenda-se retífica e talvez não resolva. Somos canalizadores, verter esgoto é opção. Eu aprendo, acima de tudo. Quero ser humilde o tempo inteiro, mas nem sempre consigo. Quero ser justo, sem a falsa moralidade do imparcial utópico. Quero ser mais espírito, mas a matéria me puxa pra baixo. Estou vivo, afinal.
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