COMO EU ESCREVO




O ato da criação é pessoal, intransferível. Não há receita, apenas exemplos de pessoas que trabalham parecido, nunca igual. Aqui, ao responder questões padronizadas, elaboradas por José Nunes, editor do projeto que já ouviu dezenas de autores, revelo como acontece “a verve anímica intuída”. Em outras palavras, o Exu Literato. Reproduzo a íntegra abaixo. Ao final, o link que remete ao site Como eu Escrevo, onde podem ser acessadas também as outras entrevistas.

1. Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A pergunta parece simples e soa abrangente, mas as respostas serão pessoais e intransferíveis. Não há regra, embora existam aconselhamentos, “dicas” dos mais experientes. Quando eu tinha emprego formal e cumpria expediente, desde os anos noventa do século passado até 2015, sou jornalista e atuei em veículos de comunicação, assessoria de imprensa institucional, minha produção literária acontecia à noite. Às vezes, madrugada adentro. Nos últimos quatro anos, por força de circunstância maior, a exemplo de outros jornalistas veteranos chegando a meio século, como é o meu caso, topei o desemprego e não consegui a recolocação. Precisei me reinventar. Aos poucos, muito lentamente, recomecei como ghost writer e revisor para editoras, ministrante de oficinas EAD e presenciais sobre criação literária e escrita criativa aplicada. “Desmontar” textos é algo que pratico desde cedo. Aos 19 anos, em 1992, fui selecionado e ingressei na décima turma da Oficina de Criação Literária no Curso de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil. Hoje trabalho em casa, construí uma rotina para atender à demanda remunerada com a escrita, e também a minha produção literária. Assim eu escrevi a minha primeira narrativa longa, o romance Lambuja, publicado em 2017 pela Editora Metamorfose. Foi o meu primeiro contrato também, após dois livros individuais (um totalmente independente e outro publicado por editora, mas bancado por mim). Então, eu tenho uma rotina diária voltada à literatura, ainda que a minha obra pessoal esteja atualmente sem rotina, por causa do trabalho remunerado. Meu próximo livro, romance histórico ambientado em 1820, está em produção num ritmo lento, mas constante. Já tenho estruturados os capítulos, existe um “mapa” da narrativa e vou preenchendo as lacunas sem pressa, livre de angústias. Quando escrevo para mim, prefiro trabalhar à noite, até as primeiras horas da madrugada. Quando escrevo para os outros e reviso, ou edito e faço revisões, o período de trabalho é horário comercial.

2. Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há ritual, apenas café e água. Nos trabalhos por encomenda, eu sento em horário comercial e faço o que deve ser feito. Na minha obra literária, também não existe ritual para escrever. Eu “engravido” do texto e preciso construí-lo. Como sou o chefe de mim, encontro horários dentro dos meus horários e faço acontecer. Contudo, nada ocorre antes do insight. Quando concebo uma ideia – prefiro dizer que intuo ou recebo, capto – faço as anotações de “roteiro” e reservo o material para “maturar”. Depois é que vou escrever. Isso para contos e crônicas, ensaios. Nas narrativas longas, preciso organizar TUDO antes de escrever. Quando inicio, já sei onde vou parar e o que desejo, embora ocorram alterações e pequenos ajustes a meio caminho.

3. Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu trabalho com as metas das editoras quando sou ghost writer. Quando escrevo para mim, a suposta obra literária em construção permanente, não tenho pressa alguma. De forma objetiva, escrevo todos os dias e a intensidade varia. Eventualmente, fico alguns dias sem escrever.

4. Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pergunta é interessante, eu poderia falar algumas horas sobre isso, é o tema de uma oficina que ministro, “Pesquisa para narrativa longa”. Em literatura não existe verdade absoluta. Ouvi isso de um autor consagrado, numa das inúmeras vezes em que recorri à experiência alheia, buscando orientações sobre o fazer literário, seus labirintos e armadilhas. Erico Verissimo era um “engenheiro” nos bastidores da criação. O Tempo e o Vento, a saga, foi totalmente planejada antes dele iniciar o trabalho “braçal” de construção e desenvolvimento dos volumes. Ao escrever, portanto, sabia de antemão tudo o que aconteceria durante a narrativa. Chegara, inclusive, à minudência de reproduzir em papel o mapa mental que traçara da “cidade cenográfica” de Santa Fé. Tintim por tintim.

O tempo de duração da pesquisa é subjetivo e pressupõe o que fora estipulado durante o planejamento, no esboço de rascunho, síntese ou anteprojeto, se houver maior preocupação com a excelência do trabalho. Ao prestar atenção nas coisas do mundo, já estamos pesquisando. A construção das personagens também exige pesquisa. Pode ser um ponto de partida relevante. As mães reconhecem e sentem os filhos mesmo antes do nascimento, ainda no ventre. O autor também precisa conhecer a seus filhos como uma mãe, porque somente ela tem a capacidade de capturar a essência da alma dos rebentos desde a barriga.

5. Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travas e bloqueio criativo são coisas de autor consagrado, nada sei a respeito. Inexiste medo de não corresponder. Ninguém é unânime, ninguém é totalmente rejeitado. Por que angústia? Outros melhores e mais preciosos já vieram e foram esquecidos. Eu escrevo porque sou movido, sinto que devo fazer. Reconhecimento como escritor avalizado por instituições. O que é isto, afinal?

6. Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Para os livros eu sempre peço opinião. Narrativas avulsas, nunca. Escrever. Apagar. Editar. Tarefas cujo processo foi agilizado pelo desenvolvimento tecnológico. O horizonte é o mesmo para todos, cores e perspectivas variam por motivos individuais. Escritor habilidoso é um sniper da vida alheia, acostumado a ampliar os detalhes à distância. Não existe ficcionista mais capaz, em termos de criatividade, do que as circunstâncias e situações oferecidas pelo cotidiano. Tudo passa pela habilidade de reproduzir esses conteúdos de forma literária. Desconheço autor bem-sucedido que não seja um paciente observador. Quando seleciono contos para os meus livros, divido o texto final com outros autores. O mesmo ocorreu na narrativa longa. Se envio contos e crônicas solicitados para coletâneas, retiro do acervo inédito, produzo algo temático ou envio texto já publicado na internet.

7. Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Caneta ou lápis, em qualquer papel disponível, faço anotações de frases, palavras-chave, num garrancho horrível que tenho dificuldade para traduzir. Vou para o computador e abro um documento, enfio tudo ali e trabalho para organizar, ampliar. Papel é apenas partida e lembretes. Nos trabalhos de ghost writer idem.

8. De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Faz parte do ofício. Ando pelas ruas em busca do detalhe que escapa por ordinário. Comumente desprezado, embora inserido à paisagem urbana. A cidade é uma aula de história a céu aberto. Laboratório de percepções. Garimpo invisível à maioria, ocupada em administrar a azáfama que se impõe rotineira. Para mim, esse olhar vagabundo é oxigênio. De outra perspectiva caio no vácuo. Nada existe, implodo e a vida perde o sentido.

As minhas ideias eu não entendo como minhas, exclusivamente a verve pessoal. Eu as capto, ou recebo como medianeiro, de forma que não posso explicar à luz da ciência, porque essas coisas não acontecem no minuto e instante desejados para o cientista fazer anotações e validar, tampouco são externadas de forma física, acontecem de maneira sutil por meio da intuição. É pessoal e intransferível, imponderável, intangível, inominável e místico, eventualmente ideal para eu ser rotulado tolo sincrético. Não me importo.

O mistério da palavra. Poetas e prosadores têm a palavra como algo dotado de “poder mágico”, capaz de construir no imaginário do leitor um universo à parte. Para obter essa linguagem, o artista não se limita aos padrões linguísticos vigentes. Em alguns momentos a fronteira é rompida. Cada poeta é um autêntico subversivo. Ele cria novos sentidos, desenterra antigas acepções e faz um banzé. Seu poder vai além, batendo às portas da sintaxe, quando resolve reformar concordâncias nominais e verbais, gerar novos padrões e regências. Poema, conto, romance, a criação literária em geral não se encerra em rígidos significados únicos, pressupõe múltiplas implicações significativas. Para cada poeta, cada novo autor que toma conhecimento, o leitor deve aprender “uma nova língua”.

Queres entender o que move um poeta ou prosador? Pense nas coisas que te pegam pela alma e arrastam àquele mundo de sonho abandonado, a saudade do que não tens lembrança e resiste, ainda que haja passado o tempo de uma vida, de todas as vidas de todos os homens até o último dia da criação. Se não tiveres alma, apenas reflexos condicionados, pense naquilo que te realiza e tens de fazer a qualquer custo, sob pena de murchares, morto-vivo. O ato de necessidade fisiológica, força anímica que movimenta o autor. Morreríamos secos, todos nós, se não o fizéssemos, sejamos crentes ou descrentes em “algo maior”. A vida, maratonas e situações com desfechos inesperados, muito além da capacidade inventiva de autores ficcionais. São intervalos a marco, como num filme, quando o diretor interrompe a cena principal e retorna no tempo em flashback, aonde o espectador apreende uma breve explicação, sem a qual o desfecho seria nebuloso e o roteiro falharia, incompreensível por mal-acabado.

Em todos os lugares surgem esses escribas, ou cronistas, poetas, o nome é indiferente para uma mesma função inata. O contador de histórias remonta às tradições milenares de povos africanos, asiáticos, no oriente médio e mesmo entre os ameríndios. Nos confins do altiplano inca, nas selvas maias ou planaltos astecas, aonde quer que seja, o homem vai manifestar o verbo.

9. O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo mudou no meu processo de escrita ao longo dos anos. É água e vinho. Por experiência e treino, coisa normal em qualquer autor, tempo decorrido e o amadurecimento não apenas da pessoa, mas também do escriba que aumentou a habilidade. Se eu pudesse voltar à escrita dos primeiros textos? Eu já fiz isso e resgatei um conto de 1992, dei uma ajeitada e não ficou tão mal. Mas, em geral, seu eu pudesse voltar no tempo, daria um conselho de Nelson Rodrigues a mim: “envelheça com urgência”.

10. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um projeto de livro autobiográfico intitulado “Ricardo perdeu o juízo”, algo tipo o “Caminho sem Tiago”, sobre a minha vida desimportante e o que houve, ao longo do trajeto, para me tornar menos denso e fazer sair do estado bruto materialista, transitar de forma definitiva, diuturnamente e sem retorno, por sutilezas que sempre estiveram presentes, evidentes à volta, mas eu preferia ignorar. O intangível inominável.

Sobre a segunda parte da pergunta, o livro que não existe. Eventualmente, podes inventar uma daquelas palavras compridas impronunciáveis de certas línguas estrangeiras. As nossas, latinas, não têm a mesma “mecânica” e, portanto, dizem ser improvável irmos tão longe em significado com apenas uma palavra. Isso é verdade, mas algumas coisas são verdadeiramente impossíveis de registrar em símbolos, nós teríamos de adentrar outras formas de comunicação. Painéis que aferissem a frequência de vibração da alma, uma visão que nos mostrasse essa energia em pleno funcionamento, refletindo cores que iríamos reconhecer e traduzir. O livro que não existe é narrado por meio de ondas e vibração, pulsares e frequências. Mal comparando, as histórias e narrativas chegariam tipo download via wireless, e com isso nós construíramos as imagens mentais para entendimento do conteúdo decodificado.

https://comoeuescrevo.com/caco-belmonte

Comentários