CRONIQUETAS, PENSATAS E MINICONTOS




Antigamente havia mais disso, talvez ainda haja, mas não se ouve falar, salvo em obras espíritas e espiritualistas, o que antes poderia ser denominado, talvez, como fábula. A tradição cultural sufi, que é da linha muçulmana, tem o famoso personagem, e para admirá-lo não precisa crer em nada, mas alguns dizem que nem existiu, outros afirmam que foi inspirado noutras pessoas e fizerem-no. O mulá Nasrudim, muitos ouviram falar e outros já leram suas tiradas e pensatas, foi traduzido e impresso no Brasil também, circulou como literatura comum, embora tenha um cunho filosófico. Então, de vez em quando alguns procuram verter algo de ficção para pensar a respeito, não apenas entreter. As duas coisas, se possível alcançar, é o ideal do autor. Ao menos, em muitos casos. Em literatura, isso chama-se estranhamento, causar sensação nas pessoas, no bom sentido. Sensação para incomodar e fazer pensar.

DIÁLOGOS DO VESÚVIO #miniconto
O abastado comerciante sobreviveu à erupção no ano 79. Estava longe da região, quando chegou encontrou as coisas soterradas. Naquele instante, bateu a miséria em definitivo e os escravos que estavam com ele lhe deram uma tunda, tomaram o que havia restado de suas coisas e partiram. Ele também partiu, encontrou paz num eremitério pagão. O mestre do templo custou a lhe fazer entender. "Tudo o que acontece a culpa é tua". Tentou protestar. "Mas, o vulcão me tomou tudo". E o mestre, por mestre vaticinou. "Justamente, mas tu sabias, todos sabiam que a montanha vinha dando sinais de que iria explodir, porque os mais antigos já sabiam como se comporta nesses momentos que antecedem, e vocês se apegaram às coisas, ao invés de correr para longe. A culpa é sempre tua".

O CANTO DAS PERERECAS E A VERTENTE ESCONDIDA
Eu não queria escrever isso, porque não tem endereço e pode ser lido enviesado, mas eu falo do "canto" da perereca, imagino que a rã macho faz esse barulho que ecoa pelo matagal aqui perto, em pleno bairro, porque era região com nascentes que a expansão imobiliária dos anos 80 "engoliu". Permitiram que enfiassem algumas nos canos do DEP para escoar, mas a natureza não se rendeu a isso, de forma que alguns terrenos ficam sempre úmidos e verte água, então juntam sapos e rãs e até aves, exatamente igual ao que acontece nos fundos do Jockey Clube, rente ao posto de gasolina Ipiranga, numa das entradas do Barra Shopping. Permanentemente alagado, porque verte e escapa também, infiltrado, do valão principal que corre na avenida e um dia foi a vila Cai Cai, com palafitas escoradas no talude.

PARECE QUE SÓ EXISTE O HUMOR PREGUIÇOSO
Eu quero ver, isso não tenho encontrado faz tempo, aquele humor que não precisa destruir alguma coisa para fazer rir. Quero ver fazer rir com mais inteligência, fazer rir aos que pensam em contrário, daí é humor bem-sucedido. Liberdade para criar, não abro mão. Podem fazer qualquer coisa, a Constituição assegura isso. A Constituição só não garante inteligência a quem cria, nem a quem recebe a criação e interpreta como bem entende.

O VIZINHO SURPRESO
Agora à tarde, faz uns trinta minutos, o vizinho me chamou de canto no hall de entrada, ar meio piedoso. Por intermédio de outro morador do prédio, soube que eu estava escalado, a convite desse condômino, para ajudar numa pintura de apartamento. E não ficou surpreso com a ajuda, mas com o fato de que seria remunerado. "Parou de escrever? Gostei tanto daquele teu livro do Orkut. Pô, isso não é trabalho para escritor e jornalista. Ainda mais tu, eu já te vi no jornal e na tevê. Não vai mais escrever, desistiu?". E tive de explicar, pacientemente, que a literatura sozinha nunca foi suficiente para me sustentar e que, a bem de verdade, quando os trabalhos surgem e são remunerados, sejam quais forem, inclusive varrer calçada, eu assumo e não tenho vergonha. Trabalho é trabalho.

A FURADEIRA E O CARRINHO DE CACHORRO-QUENTE
A propósito do está dito acima, onde eu falo que pego qualquer trabalho e não tenho vergonha, lembrei do que houve faz quase 30 anos. Um amigo empresário bem-sucedido, então iniciando no ramo dos lanches e alimentações rápidas, depois foi empresário na noite e hoje ainda está no ramo do entretenimento, com uma bela e ampla, bem equipada casa de eventos no bairro Ipanema. Lá naquele início da década de 90, ele empurrava com outros camaradas um carrinho de cachorro-quente, que inclusive ajudei a construir, emprestando a eles a furadeira da família Belmonte. Ficavam instalados na avenida Guaíba, esquina Flamengo. Lá atrás, eu comentei com esse amigo, o João, que estava estudando para não precisar empurrar carrinho. Coisa linda, a boca fala e o cu paga.

DIÁLOGOS
- Meu, tô montando um aplicativo pra funcionar no país inteiro, o lance vai bombar, preciso que tu me ajude nos textos.
- Claro, vou te mandar umas propostas de orçamento.
- Orçamento?
- Sim, não é trabalho?
- Pô, mas a gente é amigo. Pensei em te pagar um almoço.
- ...... (sinal de linha cortada - tuu tuu tuu).

DIÁLOGOS NO SOFÁ PÓS-NOVELA
- Ai, amor, tem aquele remédio? Acho que vou no banheiro.
- Comeste as balas de banana? Os três pacotes?
- Não, só comi dois e meio.

Sempre estranhei a pessoa fantasiada de Papai Noel, não lembro de ter chorado em criança, mas hoje ali dentro eu vejo tudo, tarado, psicopata, bêbado, ex-presidiário, religioso, vovô virtuoso, qualquer coisa, menos Papai Noel.

Aqui não tem jornalista, ou escritor, qualquer coisa titulada pelo homem. Tem apenas uma pessoa cheia de dúvidas. "Estou numa ignorância terrível de todas as coisas", já disse Pascal. Esse sim, digno de crédito.

Eu causo sensações em muita gente. Isso, em literatura, chama-se estranhamento. É o que o autor geralmente busca. Em alguns momentos, quando sou bem-sucedido, isso acontece. Ao mesmo tempo, também atrapalha, numa relação pessoal por exemplo, nem toda companheira entende que as pessoas falam do texto e textos são ideias. É complicado.
Eu paro de casar, mas não paro de escrever.

LUPA E LUPANARES
Passar pelas urnas, entrar para a igreja ou professar fé, envergar uniforme militar, toga, distintivo de polícia, não são atestados de probidade compulsória. Cada caso é um caso, depende.

Piedade de leão, Clarice. Tu eras profetiza e o soturno na face de tuas palavras vislumbrava o rosto daquilo que nos tornamos.
Clarisse Lispector - 10/121920 - 09/12/1977

DIÁLOGOS DO VOVÔ NO CAIRO
- Vô, depois da vida, qual é a maior riqueza que recebemos?
- A morte.

Mesmo cativo, ainda estou livre.

DIÁLOGOS
- Minha vida material tornou-se caótica, mas conquistei enorme riqueza interior.
- Porra, isso é fracasso!
- Ai, não tinha pensado nisso.

DIÁLOGOS
- Porra, tá malhando em academia?
- Sim, já estou mais forte. Deu pra notar?
- Ainda não, mas tu és o único que estás sem camisa e percebi que precisamos notar alguma coisa.

EXISTE UM TANTO DE OLAVO EM MIM
Num ponto, a literatura e a filosofia se aproximam aqui no Brasil. As duas estão repletas de Olavos e porras-loucas que afrontam os carimbos institucionais, cânones e a cátedra. E olha só, como sou contraditório. Não valido Olavo de Carvalho. Contudo, como me interessa, eu valido a literatura que corre sem carimbos, e acontece longe do compadrio de confrades em maçonarias literárias que escolhem quem vai, quem fica, quem entra e quem deve ser ignorado.

Querem me convidar para saraus? Não há problema, eu aceito. Basta que imprimam meus textos e leiam. Lá estarei.

DIÁLOGO DOENTES
- Ai, ando comendo que nem louca.
- Pois é, te achei mais gorda.
- Sério? Acho que vou começar a vomitar de novo.
- Tu não tinha parado?
- De vomitar sim, comer não.

"Todos se queixam, príncipes, súditos, nobres, plebeus, velhos, moços, fortes, sábios, ignorantes, sãos, doentes de todos os países, de todos os tempos, de todas as idades e de todas as condições".

“Não sei quem me colocou no mundo, nem o que é o mundo, nem o que sou eu mesmo; estou numa ignorância terrível de todas as coisas”.

Blaise Pascal, filósofo do século XVII (1623-1662).


A cadeira do vovô era instituição nas casas. Hoje a cadeira é na casa de repouso

Quase água. Sólido, não gelo. Parece estável, mas vibra e não existe uma parte sua em que não haja espaço no meio. O homem.

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