APREENDI DO HOMEM DE 93 ANOS


Conheci Joel Blank em julho de 2019, então com 92 anos. Ele havia reunido um vasto material para obra memorialista, na qual vinha se debruçando faz algum tempo. Livro planejado, gestado e amadurecido como forma de perpetuar informações de registro e deixar um legado à família, extensivo a todos os leitores que estiveram com o volume em mãos. O meu entusiasmo na empreitada, para a qual fui contratado profissionalmente, nunca esteve na remuneração do ofício, e sim no cacoete de escritor que garimpa boas histórias para crônicas verídicas e contos, narrativas longas (romance, novela). 

Joel poderia ser um desses personagens da ficção. Provavelmente, minha verve criativa seria incapaz de superar a própria vida e os desígnios que lhe foram reservados pelo imponderável ao longo de sua caminhada até aqui. Tivemos muitos encontros para reuniões de trabalho, o material que reunira seria suficiente para um tomo de 900 páginas, no mínimo. Além dos originais de próprio punho que formam a íntegra do livro, inicialmente me chamou atenção que foi engenheiro da Varig, resgatava aviões acidentados e os tornava aptos a voar outra vez. Essas e outras histórias eu apenas enxuguei, ajeitei o texto do ponto de vista literário e a construção da narrativa, como seria estruturada para que o leitor pudesse vislumbrar esse panorama de nove décadas. 

Por meio de sua história pessoal enxergamos o Rio Grande do Sul, também o Brasil e boa parte do mundo. Sem falar na linha cronológica de desenvolvimento da tecnologia, que acompanhou como espectador, estudioso e profissional nas indústrias onde esteve empregado, e naquelas onde foi contratado para empreitadas, eventualmente consultor. Versátil, desloca-se com êxito e desenvoltura em vários ramos, desde a complexidade da engenharia aplicada à aviação, passando por refrigeração e ambientes climatizados, siderurgia e outras especialidades “malucas” impensáveis a quem não é do ramo e apenas utiliza os produtos que chegam em nossas casas, como geladeiras e condicionadores de ar.

Na entrevista que encerra o livro, organizada em tópicos, procuro mostrar um homem mais distante do engenheiro que vimos ao longo de toda a sua narrativa pessoal, ordenado e científico, cartesiano. Esse Joel Blank capaz de feitos memoráveis, como a construção de fábricas brasileiras no Oriente Médio. Antes disso, entre outras coisas, coordenou projetos de engenharia que adaptavam aviões do tempo da Segunda Guerra, comprados pela Varig como refugo do conflito mundial, a exemplo de grandes companhias aéreas em outros países, para operar rotas comerciais de passageiros e carga. 

Tudo isso está dito nas páginas que ajudei a editar. O que não está escrito, mas revelo ao final porque destacou-se a meus olhos, trata-se de singelo detalhe em sua trajetória, apenas um traço na personalidade do homem. Faz uns 20 anos, me contou Joel num momento desapercebido, estava em Tramandaí com outras pessoas, parentes e amigos, crianças e jovens à beira-mar, com quem conversava na areia, apesar do forte calor em pleno verão. E daí perguntei: "Como assim? O senhor desafiava o ar, erguia complexos industriais e fábricas modernas, mas não sabe nadar? Nunca aprendeu?" Ele me olhou constrangido, acenou positivamente, velha e sábia cabeça lúcida, confessou. "Nunca aprendi. Sou de Erechim, pombas".

“Pombas”, percebi isso ao longo de nossos encontros, porque em nenhum momento ouvi palavras de baixo calão surgidas de sua voz serena e bem pontuada, é a metáfora que Joel utiliza para designar qualquer dito inominável usual na boca de muita gente, mas ele jamais pronuncia.

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A curiosidade aguçada em busca do saber
“O que impulsionou minha busca por estudo e conhecimento foi a simplicidade e a falta de tudo na época de minha infância. Era tristeza muito grande, carência enorme de todas as coisas, até as bolachas precisavam ser importadas ou trazidas de longe. Em Erechim, haviam apenas fábricas, gelo e picolé. Aquilo me martelava, e a curiosidade que também meu pai ajudava a açular, mostrando como as coisas funcionavam, motores inclusive. Eu ia aprendendo na prática, ainda sem teoria. Se houvesse dez automóveis na cidade, naquele final dos anos 30, meados da década de 40, seria muito”.

A influência do pai
“A vantagem é que meu pai era professor e tinha o dom para a docência. Quando ministrava aulas em casa aos alunos matriculados, na época não se chamava assim, mas ele tinha alunos e dava aulas em nossa casa, então eu já acompanhava meio “de rabo”, ouvindo tudo atrás da porta, até que me tornei meio aluno também. E nunca parei de ler, o pai incentivava leitura em sua biblioteca”. 

O estudo formal que começou tarde
“Aos 15 anos ainda não tinha os estudos regulares, estava meio atrasado. Em Ivo Ribeiro eu trabalhei, não tinha onde estudar formalmente, me atrasei dois anos. Para estudar em Pelotas precisei exame de admissão no ginásio. No Colégio Pelotense, fundado pelos maçons, fui bom aluno. Eles tinham um modelo de ensino que era inspirado no Colégio Dom Pedro II no Rio de Janeiro, com material didático de alto padrão para a época e isso foi trazido para o colégio de Pelotas fundado e mantido por maçons. 

As especializações
A partir da faculdade, procurei fazer estudos de matérias que teriam aplicação prática em minha vida. Quando criança, por exemplo, adorava trens e me encantavam as ferrovias. Mas, quando percebi que dependiam de governos e isso dificulta tudo, ao contrário de outras áreas da engenharia que andam por conta da iniciativa privada, descartei a possibilidade de estudar aquilo que me encantava anteriormente e sempre me encantou, mas seria contraproducente. E depois vimos mais tarde, o melancólico desmonte do modal ferroviário no Brasil, que hoje funciona para o transporte de cargas apenas, e longe ainda do que poderia ter sido, se houvesse outro direcionamento desde antes”. 

Como imagina a humanidade daqui a 50 anos
“É difícil prever. Se pegar o exemplo da telefonia, a dificuldade que era antigamente para se conseguir uma ligação, haviam telefonistas que conectavam de uma central às casas das pessoas, quando recebiam ou faziam ligações. Depois foi melhorando e surgiu o celular, depois o celular virou computador e hoje as pessoas fazem tudo por ali. Então, com a velocidade em que tudo avança, bem mais rápido do que antes, não é simples fazer previsão para uma década, que dirá meio século.

Sobre a família como base indissolúvel
“Sempre foi muito unida desde o tempo em que vivíamos com meu pai, éramos seis filhos. E hoje ainda moramos juntos, eu e meus filhos à volta, somente um que não vive por perto. Sempre fui fundamental a família, os irmãos que vivem se reúnem quando podem, talvez isso seja uma característica nossa que vem desde os primeiros imigrantes alemães, porque precisam estar unidos para prosperar e desbravar o que era isso aqui. Então, eu deduzo essas coisas passam de geração a geração e nós assimilamos isso, mais a questão do anglicanismo também, essa forte noção do comunitário que congrega em torno da igreja com seus eventos e atividades que vão muito além do culto”.

Se deixou algo por fazer, ou poderia ter sido melhor
“Melhor eu não poderia fazer muito, porque depende sempre do grupo. Tenho uma grande mágoa é da pobreza no Brasil, essa miséria que se enxerga para todo lado e isso pode virar ainda uma revolta que seria perigosa. A saída é sempre a educação, o crescimento dos índices de desenvolvimento passa obrigatoriamente pela melhoria nos índices de ensino. Eu gosto de lembrar o caso da Itália, que orienta aos alunos com noções de caixa e gestão ainda na escola, coisa que aqui não existe de forma majoritária e deveriam ser disciplinas curriculares”.

“Eu gostaria de ter feito, eventualmente, mutirões para construção de casas otimizadas com materiais alternativos e que tornam o custo mais acessível, sem reduzir a qualidade final. Gostaria de ter ajudado mais pessoas, apesar de anonimamente eu ter contribuído com um e outro, nem sempre resolvendo de forma definitiva seus problemas, mas ainda amenizando e até encaminhando soluções que sempre passam pelo incentivo ao estudo e ao estudo profissionalizante”.

A indescritível emoção do reconhecimento agradecido
 “Sentimento do dever cumprido é a boa ação que a gente faz e nem percebe a importância da coisa, senão quando nos contam mais tarde. Houve o caso do funcionário da Varig que era o melhor restaurador e ajustador de portas, nenhum outro fazia o mesmo serviço como ele. E eu costumava incentivar a todos que estudassem, até porque existia uma lei que permitia que as indústrias dispensassem funcionários depois de oito anos, mas a Varig não fazia isso, desde que o colaborador estudasse e avançasse na estrutura organizacional. Então, anos mais tarde eu encontrei esse funcionário e perguntei a ele, se por acaso ainda estava na Varig. Disse que não, pois seguira meu conselho e nunca mais havia esquecido de mim. Segundo ele, na época que o conheci ainda era um rapaz, de tanto eu insistir, fui estudar mais e mais e tornou-se médico. Me contou um pouco de sua trajetória e havia se tornado dono de hospital numa cidade do interior gaúcho. Foi, para mim, uma emoção inenarrável e ainda hoje me emociona ao lembrar”.

Perceber o sofrimento do outro por pobreza sempre incomoda 
“Ainda acredito e sempre tive certeza de que o estudo é a melhor saída para alcançar uma posição na vida. Eu recomendo isso a todos, inclusive ao jovem que corta a grama aqui em casa, quando converso com ele sobre essas coisas e me interesso em saber como andam seus progressos. Lembro que estudei com um rapaz moreno, meu amigo, era o único negro da classe, ele se tornou dentista e ingressou no Exército, aposentou-se coronel. Não fosse o estudo, jamais não teria alcançado essa posição. Boa parte dos homens pensa muito em si e não se importante tanto com os demais. E a gente se sente mais leve quando ajuda alguém, incentiva a crescer e vê que isso deu resultados”. 

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