A MEMÓRIA COMO ALICERCE DA NARRATIVA



Em todos os lugares surgem esses escribas, ou cronistas, poetas, o nome é indiferente para uma mesma função inata. O contador de histórias remonta às tradições milenares de povos africanos, asiáticos, no oriente médio e mesmo entre os ameríndios. Nos confins do altiplano inca, nas selvas maias ou planaltos astecas, em qualquer tempo, o homem vai manifestar o verbo. 

A parte conceitual da memória pode ser apresentada em diferentes perspectivas, cognitivas e mesmo filosóficas, considerando abordagens oriundas da sociologia e a história, desde a remota tradição oral de narradores ancestrais. Na Grécia Antiga a memória era observada como agente estruturante das narrativas. Representada pelos gregos na figura da deusa Mnemosine, mãe das musas e deusa da reminiscência.  O nome está relacionado à palavra em grego que significa algo como, numa livre tradução aproximada, “lembrar-se de”. 

Já a seguinte afirmativa é consolidada entre acadêmicos que pesquisam a área da comunicação: pela competência narrativa os indivíduos sistematizam e falam ou escrevem sobre os fenômenos do mundo, dando ao tempo uma dimensão humana. Isso diz respeito, sobretudo, à capacidade de armazenar informações na memória e trazer à tona essa lembrança por experiência. 

Segundo Walter Benjamin, ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo alemão, associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, “as lembranças são mãe das musas da narrativa”, evocando a perspectiva grega. A memória estabelece uma relação atrelada à arte de narrar, seja para narrativas ficcionais ou acontecimentos reais, como no caso dos livros-reportagem e até a simples narrativa jornalística cotidiana.

Vou dar um exemplo:
São inseparáveis, a maconha e o Brasil, desde o dia em que os portugueses aportaram na região hoje conhecida como Porto Seguro, Bahia, porque as velas eram feitas de linho cânhamo, uma variedade de maconha, as folhas inclusive são iguais, mas a diferença é o baixo teor de THC, portanto não é usada para consumo entorpecente.  A fibra do tecido que impulsionou naus e caravelas, hoje está em etiquetas de marcas famosas e também surge como alternativa econômica sustentável com melhor potencial do que o algodão e os tecidos sintéticos.

O cânhamo é cinco vezes mais resistente do que o algodão e tem sido usado como uma espécie de plástico biodegradável, menos poluidor do que os tradicionais à base de petróleo. Também serve para o biodiesel e pode ser empregado na fabricação de materiais de construção e isolantes térmicos, como painéis e blocos de concreto. E serve de alimento para humanos e animais, as sementes podem ser consumidas cruas, processadas para extrair óleo ou moídas em forma de farinha, de onde é possível fazer leite de cânhamo.

Da outra maconha, aquela que dá barato, toneladas são consumidas anualmente pelos brasileiros, já faz bastante tempo, nem sei dizer quanto, e talvez poucos saibam, certamente mais de um século. 

Quem consome a droga tem uma relação de coisa que congrega, mal comparando é como o gaúcho que reúne amigos nas rodas de chimarrão. Isso acontece em todas as classes. Como o "amargo", também o baseado passa de mão em mão. A coisa chega a tal ponto que, em algumas épocas de vacas gordas, quando eventualmente aparece no mercado a maconha fora de série, sempre surge um gaiato criativo para designar o fumo do momento com nomes afetivos. E aqui voltamos a falar em memória, tudo o que eu disse antes remete a isso. Nos anos 80, houve o Bigode do Sarney. Com nomes televisivos, tivemos Dom Lázaro e O Clone. Também inventavam outros apelidos, como o famoso Quebra-unhas, fez sucesso em Porto Alegre no início da década de 90. Eis o que é, amantíssimos.

Ainda sobre memória, não ouso arriscar dizer quais são as piores coisas, nem fazer listas dos melhores autores, melhores bandas, melhores filmes ou atores, porque é injusto com tanta gente boa e faltaria espaço também, caso resolvesse citar as criações rasas e torpes, mal-ajambradas que vamos topando pelo caminho nas artes em geral. E ninguém vive sem arte. Bem ou mal, em algum momento a pessoa faz contato com essa subjetividade, nem que seja ao escutar a música que o vizinho toca em altos brados num churrasco de domingo com amigos, antes da pandemia e mesmo agora, porque isso já está acontecendo novamente. 

Em oficinas de criação literária que ministro, um dos exercícios foi criado especificamente para açular a memória. Eu peço que reúnam frases soltas de músicas das bandas gaúchas dos anos 80, por exemplo, ou da época em que o aluno viveu um período específico de sua vida, demarcado entre 15 e 25 anos. E isso pode render um texto literário, com a ajuda da memória sem consultas aos Google. Eventualmente, surge alguma coisa interessante em forma de narrativa, ou colcha poética com retalhos de frases musicais. 

Senão, vejamos:
"Não me mande flores. Pare de bater no interfone, não preciso do seu amor. Eu era um cara que fazia tudo aquilo que a garota queria. O inferno vai ter que esperar. Estamos sós, nenhum de nós sabe exatamente onde vai parar. Liga essa bomba que tá na mão".

Isso é exercício de criação literária também, ou escrita criativa, moderna nomenclatura inventada por acadêmicos recentes. Eu passo esse exercício nos primeiros níveis dos módulos que ministro a eventuais alunos EAD, quando surgem dispostos a me remunerar.

E alguns alunos pedem nota, querem que os classifique. E isso não existe nas minhas “aulas”. Em oficina, ensino e aprendo também, porque o aluno sabe muito, salvo raríssimas exceções, e o que trazem de bagagem deve ser considerado e até explorado, para facilitar "o despertar da coisa". Mesmo no caso dos muito jovens que leram quase nada. Então, "a coisa" é meio que uma troca também, embora eu tenha uns 30 anos de estudo, incluindo formal e pesquisas próprias, aprimoramento com leituras de minha predileção, a formação do pretenso escritor. 

E a memória, por conveniência ou necessidade, às vezes se perde com rapidez. Não faz muito tempo a prioridade das bandeiras em Porto Alegre era o combate aos flanelinhas, ou o preço absurdo nos estacionamentos privados, o barulho em bairros residenciais com bares noturnos, camelôs em profusão no Centro. Questiúnculas. Tudo muda rápido quando surge algo inesperado que não está sob controle, nem pode ser controlado de uma hora para outra. É como a guerra, as coisas continuam funcionando e vão caindo aos pedaços pelo caminho, como as pessoas, física e mentalmente, espiritualmente abatidas.

Eu gosto de lembrar a história. Depois da Peste Negra veio a Renascença. E apesar disso, logo em seguida o recrudescimento da Inquisição surgida ainda antes. E houve as conquistas ultramarinas na sequência. Sempre que acontecia essa "interação" cultural e comercial, também ocorriam os intercâmbios microscópicos, virológico e bacteriano. 

Guerras, epidemias e revoluções são os grandes "catalisadores" de mudanças, nem sempre para melhor. Das epidemias recentes, se não estou equivocado, a primeira que derrotamos foi a varíola, existe vacina. A Aids é controlada, mas não existe cura definitiva. Em Londres, séculos XVIII e XIX, mesmo que os aristocratas pudessem fugir da aglomeração urbana e correr para suas propriedades rurais, em casos de pandemia, lá pelas tantas perceberam que era preciso melhorar as condições de saneamento das classes menos favorecidas, caso contrário faltaria mão-de-obra para a revolução industrial e também para servir nas casas dos ricos. E assim, após o período conhecido como "O grande fedor", por causa das ruas emporcalhadas e os surtos de cólera, resolveram fazer as grandes obras de infraestrutura urbana em saneamento, já com boa parte concluída por volta de 1865.

Ao contrário do que dizem, não possuo memória de elefante, embora curioso. Eu tenho a senha para alguns "arquivos que foram salvos nas nuvens", o computador de acesso está submerso nas águas profundas do oceano. A sonda mergulha nas fossas abissais e faz o download. 

DIÁLOGO INCIDENTAL #miniconto_temático 
- Seis e meia é aquela hora em que a tua vó ou tua mãe iam para o portão berrar teu nome e te chamar. Hora do banho. E tu fazias de conta que não estavas ouvindo, continuavas batendo taco ou jogando bola. Lá pelas sete horas o carro do teu pai dobrava a esquina e tu saias correndo para casa, porque as duas sempre reclamavam de ti e faziam queixas a ele.
- Bah! Tu ainda lembras disso?
- Sim, eu fazia igual.

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