1
– Já pensaste em parar de escrever essas coisas?
– Quais?
– Essas que tu publicas nas redes sociais. Mais um pouco, e nenhuma porta se abre outra vez.
– As portas já estão fechadas faz tempo.
– E os frilas que surgem?
– Não são portas de casas sólidas, apenas zíperes para entrar em abrigos temporários, barracas de nylon.
– E tu não queres voltar à segurança duma casa?
– Sinceramente, não. Viver numa casa hipotética pressupõe regras que violentam a minha essência.
– Que bobagem, todo mundo se submete.
– Justamente, eu não sou todo mundo. Lembras, quando os teus pais te negavam as coisas e, mesmo após o argumento de que todo mundo tem, ou todo mundo vai, eles respondiam “tu não és todo mundo”?
– Sim, mas isso era infância e adolescência.
– Justamente. Daquele tempo eu apreendi as coisas mais importantes.
– Inflexibilidade não é virtude.
– O que é virtuoso, então? Agir na contramão da minha essência e terminar doente, morrer antes do tempo, apenas porque todos fazem concessões?
– Sei lá. Tu tens que te foder, então.
2
– Uma pessoa com os cabelos pintados de azul passou por mim. Achei estranho.
– Por que estranho?
– Sei lá.
-Tá, mas é estranho mesmo.
– Pois é, não dá pra falar isso no “feice”, senão já nos crucificam.
3
– Tu vais no protesto hoje?
– Não.
– Dessa vez vai bombar.
– Duvido que seja maior do que as manifestações em favor de Bolsonaro e suas diatribes.
– Por que tu não vais?
– Não estou nomeado.
– Como assim?
– Só vou às ruas por política quando estou assessor.
4
– Liberdade de opinião para defender o tratamento precoce com drogas ineficazes?
– Sim, mas nem todos consideram ineficazes.
– E essa liberdade, não é irmã da liberdade que marcha pelo uso da maconha recreativa?
– Não, nada a ver. Isso é droga.
– Pois é, nem todos consideram droga.
5
– Por que tu ainda estás nas redes sociais?
– Não sei, talvez eu deseje ser notado para ter a sensação, ainda que fugaz, de que pertenço a alguma coisa e o que faço tem relevância para os outros, mesmo que esse pedacinho de mim, em segundos, talvez minutos, já tenha virado farelo.
– Tudo é ego, então?
– Sim.
6
– Tu estás trabalhando?
– Sim.
– É um novo livro?
– Mais do que isso. Acredito que seja o grande projeto de minha vida.
– Sério? Tu vais abrir um negócio? É assessoria, comércio?
– Muito maior do isso.
– Porra, mas o que é?
– Eu existo.
7
– Tu conheces algum grande autor brasileiro contemporâneo que não participa de concursos e corridas por prêmios?
– Não, porque o prêmio também interessa às editoras.
– E como os jurados sabem que um texto é bom?
– Isso é fácil de reconhecer nas primeiras linhas e parágrafos.
– Eu acho que tem treta nos concursos.
– Tu sempre concorres, né?
– Inclusive em Portugal.
– E que porra de treta é essa?
– Ah, o pessoal comenta nas oficinas.
– Tu ainda frequentas as oficinas?
– Sempre que posso. Já fiz mais de vinte, inclusive aquela contigo.
– Entendi. Eu só vejo dois caminhos para conter essa ansiedade, esse teu desejo por protagonismo.
– Sério?
– Para de te inscrever nos concursos e economiza em oficinas.
– Ah, isso nunca. Não tem uma saída melhor?
– Sempre tem. Já pensaste em parar de escrever?
8
– Se tivesses que dar um conselho às pessoas, o que tu dirias?
– Nada. Apenas acreditar que eu tenho relevância, a ponto de dar conselhos, já me torna desaconselhável.
– E um toque de vida?
– Como assim? Tipo o ET do Spielberg, que faz renascer a plantinha murcha?
– Não, um toque de vida, tipo coach de autoajuda, terapia quântica e essas coisas.
– Ah, mas isso é remunerado. Tu vais me pagar quanto?
9
– 100 anos de Paulo Freire.
– Esse cara é o pai dos analfabetos funcionais.
– Quem te disse isso?
– Todo mundo fala na internet.
– E tu já leste Paulo Freire, poderias escrever de cabeça uma resenha curta sobre um livro que tenhas lido?
– Nunca li nada, só o que falam dele. E vi uns vídeos do Olavo, sobre essa coisa da ideologia do oprimido. Paulo Coelho, sim, li e não gostei.
10
– Estou com um texto atrasado.
– É trabalho?
– Não, literatura.
– Tua literatura, ou ajeitando o texto dos outros?
– Não, o meu livro de contos.
– Tem contrato com editora e prazo?
– Porra nenhuma, eu vou bancar outra vez.
– Então, segura a onda. O livro vai estar pronto quando estiver.
– Bah! Mas agora eu já anunciei no Face.
– E vendeu antecipado?
– Tentei, mas não rolou.
– Então. Segura a onda, ninguém está interessado no teu livro.
– Será? Mas todo mundo curte o que eu publico no Face.
– Claro, no Face tu escreves de graça.
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