Antes do tempo muito antigo, viviam nas terras do sudoeste gaúcho animais enormes, dentre os quais uma espécie de tatu gigante, cuja carapaça à base de queratina podia atingir o tamanho de um Fusca. Essa parte do território, que hoje conhecemos como Rio Grande do Sul, está situada em terreno onde, no Pleistoceno, viveram os Gliptodontes citados acima e outros bichos da megafauna de então. Toxodontes, Mastodontes, Megatérios, Cervídeos e Paleolamas com mais de três metros de altura e centenas de quilos.
Surgiram milhões de anos atrás e os resquícios fósseis de sua existência começaram a ser encontrados, percebidos como tal e recolhidos, no século XIX. O interesse e a abordagem de cunho científico arqueológico ocorreram no século XX. Em 1974, das barrancas do arroio Touro Passo, município de Uruguaiana, foi retirada uma das mais recentes descobertas catalogadas de carcaça de Gliptodonte em surpreendente estado de conservação.
Se tudo isso parece improvável, como a descrição de um roteiro dos filmes Jurassic Park, ainda posso tornar a narrativa mais surreal, baseado apenas em geologia: o Jarau e o Caverá, duas formações rochosas envoltas em lendas e mistérios seculares, nas priscas eras estavam encobertos por águas salgadas, talvez fossem ilhas em meio a oceanos desaparecidos.
Dos humanos primitivos, não se pode afirmar com certeza em que período da era Cenozóica surgiram os primeiros Homo Sapiens que deambularam às margens do rio que conhecemos como Uruguai. Não é novidade; nos territórios do Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai, viviam povos ameríndios antes da chegada dos europeus, inicialmente espanhóis e logo os portugueses também. Os primeiríssimos, entretanto, foram os jesuítas da Companhia de Jesus.
A mais antiga das estâncias de criação de gado, diferente do que muitos imaginam, também corresponde ao território onde existiu a primeira redução missioneira da Companhia de Jesus, à margem direita do Uruguai, comandada pelo Pe. Pedro Romero. A fundação de Yapeyu, atestam documentos de época, foi responsabilidade do lendário Padre Roque Gonzales, em 1626. Ele também fundou outras reduções, antes de restar martirizado pelos índios em Caaró.
Roque Gonzalez, filho do capitão Diego Gonzales de Santa Cruz, célebre conquistador sob a bandeira espanhola, era aparentado com o então governador Hernandarias, espécie de pioneiro maior na região, aliado dos jesuítas. Gonzales era exímio conhecedor dos costumes indígenas, fluente também em seu idioma nativo. Ele viera da redução de San Ignácio Guazu para evangelizar os índios na costa do rio Uruguai.
Não por acaso, a escolha recaiu naquele trecho do terreno; ali era viável atravessar o rio, no local específico já então conhecido como Passo de Yapeyu, justamente porque existia um vao onde era possível cruzar as águas barrentas do volumoso Uruguai. Antes dos jesuítas canalizarem por ali a passagem do gado, os povos nativos Yaros e Charrua já haviam "descoberto" esse vau, por onde cruzavam com os seus cavalos.
Houve duas Yapeyu: a primeira, do lado onde hoje está localizada a Argentina, província de Corrientes; a segunda no lado brasileiro, com o mesmo nome acrescido da palavra Puitã, que significa cruzando as águas. Eles vieram para o território pertencente a Portugal" porque, reiteradas vezes, sofriam o assédio bandoleiro de espanhóis e portugueses, que lhes assaltavam as manadas e levavam embora suas reses.
O local serviu para o ingresso das missões oriundas do Paraguai e a região, durante o período Cisplatino, quando Portugal anexou o que hoje conhecemos como Uruguai, exerceu enorme influência na economia da possessão portuguesa. Não apenas os jesuítas canalizaram por ali as primeiras entradas de gado em nosso solo, mas anteriormente as tribos Charrua e Yaro já havia descoberto esse vau, por onde era possível atravessar o rio com as manadas equinas que povoaram o bioma pampa.
O que isso tem a ver comigo? Muita coisa, a começar pelo interesse de escritor: conhecer toda a história possível de apreender, e um pouco das lendas que povoavam o imaginário e, possivelmente, ainda o inconsciente coletivo de quem vive na região, ou tem alguma raiz familiar nessa fronteira repleta de sangue, superação, suor, tirania, lágrimas e alegria. As empreitadas para cruzar o rio, por exemplo, inicialmente caminho indígena, ocorriam no exato ponto onde existe uma ilha e, do outro lado, ficava o povoado de San Marquitos, hoje conhecido como distrito de São Marcos, onde passei alguns verões da minha infância e adolescência, nas casas de tios e avós maternos.
Dizem que os índios de ambos os lados da antiga Yapeyu, nas duas margens do Uruguai, no que hoje conhecemos como Brasil e Argentina, costumavam fazer grandes fogueiras à noite como forma de comunicação entre a redução e a estância. Esses alertas visuais aconteciam a 15 quilômetros de distância, possivelmente para sinalizar sobre a aproximação de tropas oficiais, ou bandos de salteadores em busca do gado. O abigeato já existia por aqui, antes de inventarem a palavra.
Não eram fáceis as travessias e, segundo registros dos padres da Companhia de Jesus, em muitas ocasiões perdiam-se vidas humanas e animais. Da mesma forma, combates ocorriam entre residentes de Yapeyu e os índios, e também entre as tribos (Yaros e Charruas eram inimigos com direito a registro histórico nos relatórios de Padre Romero, enviados à sede da Ordem em Assunção, Paraguai. Já em 1607, padre Torres Bollo catequizava os índios na região de Corrientes).
Em 26 de dezembro de 1635, saíram 190 pessoas de Yapeyu, muitas a cavalo, em busca de gado para levar à redução jesuíta. Passados 30 dias, retornaram com o que foi considerado "uma boa tropa". A caminho, foram interceptados por um grande número de guerreiros Yaros. Perguntados se, por acaso, o gado lhes pertencia, responderam que estavam ali para vingar seus avós e pais, mortos em tempos passados por índios agora sob a administração da Companhia de Jesus. Alguns deles, inclusive, presentes no local do encontro.
Reunidos para decidir o que fariam, resolveram os de Yapeyu resistir e forçar passagem, embora um padre houvesse lhes instruído que, caso houvesse perigo, abandonassem o gado e tratassem de evitar combates. Alguém argumentou que, caso tentassem fugir, pareceriam culpados. Dentre as 190 pessoas, haviam também cozinheiros e o pessoal de retaguarda, como meninos cantores e índios musicistas, gente que não poderia defender-se de forma adequada. Formou-se, então, uma vanguarda de bravos que deu combate aos Yaros, enquanto a parte vulnerável da tropa escapava para um terreno mais seguro. O índio Nhandaricá e o cacique Arapae foram os primeiros a tombar na barbárie registrada em diário jesuíta. Com pedras e flechas, os Yaros ceifaram 40 vidas. O restante escapou, mas o custo foi enorme também para os sedentos de vingança, que perderam na luta o seu principal cacique.
Após o Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750, quando permutaram a Colônia de Sacramento por essas terras antes jesuítas, tudo o que restou tornou-se propriedade do rei, inclusive as matas nativas. E isso estava dito na lei, então a "madeira de lei" não poderia ser cortada sem autorização dos prepostos das casas reais, embora o tratado ainda tenha levado quase meio século para ser cumprido.
As sobras não demarcadas eram os Campos Realengos, terras D'el Rey. Esse sistema de ocupação foi transplantado da Península Ibérica, onde era empregado pelos reinos de Espanha e Portugal, que o aplicavam também nos domínios ultramarinos. A expressão "madeira de lei", hoje empregada para designar o produto do corte de árvores nobres, remonta a esses tempos.
Importante lembrar que houve inúmeros acordos entre os reinos, marchas e contramarchas em gabinetes políticos onde, à distância e sem nunca ter colocado os pés no território sobre o qual deliberavam, portanto desconhecendo as realidades locais, nobres políticos riscavam o mapa da época e repartiam o terreno sem considerar as previsíveis consequências, posto que os regentes e governadores de então já haviam alertado as respectivas cortes sobre os possíveis desdobramentos dos canetaços diplomáticos.
Nenhuma das Coroas seria capaz de dizer, então, qual território pertencia a quem. A posse das coisas era por nacionalidade. Onde houvesse um espanhol, terra espanhola; onde o português estivesse, território luso. Povoações e praças-forte pertenciam a um domínio real, o resto era um "deus-nos-acuda". Daí porque, nessas terras de ninguém, onde estavam incluídos também os Campos Neutrais, criadouro de bandoleiros e contrabandistas, o gaúcho daquele tempo não entendia o contrabando como entendemos hoje (inexistiam marcos de fronteira bem delimitados).
Em 1774, por intermédio de uma Ordem Régia, a coroa espanhola autorizava a invasão e conquista das terras ainda ocupadas por famílias portuguesas. Três anos depois, em 1777, houve o Tratado de Santo Ildelfonso, determinando a retirada das forças espanholas. Entre uma coisa e outra, podemos nos lembrar da obra de Erico Verissimo. Em O Tempo e o Vento, a história de Ana Terra e sua família, início da saga, retrata esse período pós-missioneiro em que os gaúchos de então foram acossados por gente de Artigas, Sotel e Andrezito, o Guacurari.
Em 1816, Artigas peleava pela independência do Uruguai. D. João VI e Carlota Joaquina cobiçavam aquele território que, pouco depois, realmente foi anexado pelos portugueses, que o tornaram parte da Província Cisplatina. Antes, no entanto, mandaram vir da Europa um exército de cinco mil homens, incluindo mercenários de diversas nações do velho continente que, mal comparando, seriam uma espécie de comandos especiais de meados do século XIX (exatamente o caso de um dos personagens inserido no romance histórico que estou construindo faz alguns anos, ambientando na Cisplatina em 1820).
Artigas, que não era trouxa, descobriu os planos da coroa portuguesa e tomou a dianteira, surpreendendo a todos com uma invasão ao território luso, contando com cerca de oito mil homens que vieram conquistar a região "abandonada" dos Sete Povos, onde ainda havia muito gado solto e livre, "pedindo" que alguém se apropriasse. Entraram pelo vau de Yapeyu e foram direto a São Borja. Nessa incursão, a meio caminho, foi destruído o povoado de Aparecidos, futura cidade do Alegrete. No ano seguinte, 1817, houve a represália. A mando do coronel Chagas Santos, todos os povoados ribeirinhos do lado espanhol, hoje Argentina, foram dizimados.
Antes disso, no século XVII, a Estância de Yapeyu, no mesmo local que pertenceu aos jesuítas do outro lado do Uruguai, foi administrada por Juan de San Martín, militar que ocupava o posto de tenente. Vem a ser o pai do herói das américas, José de San Martín, libertador de vários povos, nascido em Yapeyu no dia 25 de fevereiro de 1778. Atualmente, esse distrito da cidade de Paso de Los Libres leva o nome do herói, San Martin, "General dos Andes". Após a saída dos missionários, a partir de 1775, a enorme estância de Yapeyu foi administrada pelo Tenente-Governador Juan de San Martin, grande negociador de gado.
No final de 1756, o governador de Buenos Aires, Pedro de Ceballos, escoltado por 400 homens, passou pela Estância Santiago quando se dirigia às reduções de São Borja e São João Batista com o intuito de organizar o ‘Correio das Missões’, que durou até o ano de 1762.
Com a nova estrutura, depois da saída dos jesuítas, o espaço fez parte do Departamento de Yapeyu, que se destacava na criação de gado. Com a conquista das Missões na margem esquerda do rio, a partir de 1801, por Borges do Canto e outros bravos pioneiros, as instalações da Estância, já sem comando, teriam sido abandonadas pelos índios missioneiros.
Na redução de Yapeyu existiam, por ocasião da exclusão dos jesuítas, além do gado solto nos pastos, os seguintes valores de animais: 48.119 vacas de rodeio, 5.700 bois mansos, 46.118 ovelhas e carneiros, 6.596 vacas leiteiras, 1.338 éguas de criação de mulas, 2.761 éguas de criação de cavalos, 4.213 cavalos mansos, 2.264 novilhos potros, 1.185 potros de um e de dois anos, 340 mulas de um ano e 258 burras em cria.
A extensão nominal de Yapeyu era imensa, mais de três milhões de hectares de terra (30 mil quilômetros quadrados), indo do rio Ibicuí ao rio Negro e do Miriñay ao Ibirapuitã. Os postos militares se mantiveram até a retirada dos jesuítas (1768). Apesar do enorme território, a produção de carne foi sempre problemática, com empecilhos surgidos no achaque constante das tribos seminômades habitantes do território, oscilações climáticas, pragas como gafanhotos, epidemias nos homens e nos animais, requisição de animais e homens pela missão jesuíta e o governo para ações militares, ou trabalhos em obras públicas. A função da estância era manter o gado reunido, sob controle.
A partir de 1814, 36 sesmarias foram concedidas. Uma das primeiras estâncias que se formaram nesse vasto território no lado de cá, antes terra jesuíta em ambos os lados do rio Uruguai, foi justamente a área que incluía a antiga estância da Companhia de Jesus. As terras foram concedidas ao Brigadeiro Thomaz da Costa Correa Rabello e Silva, com o nome de Sesmaria do Espinilho. Elas foram vendidas, em 1818, ao Padre Fernando José de Mascarenhas Castelo Branco, que, por sua vez, as repassou em 21.04.1819, ao açoriano Manuel José de Carvalho, que ali se arranchou e estabeleceu a estância que chamou Yapeyu. O local teria sido tomado e saqueado, em fins de julho de 1865, por paraguaios e índios das tropas do tenente-coronel Estigarribia, quando houve a invasão do território brasileiro no início da Guerra do Paraguai.
Por ocasião da Revolução Farroupilha, Canabarro mandou requisitar homens, cavalos e gado na região, levando mais de 4 mil reses, incluindo as mil cedidas pelo filho do português, adesista do movimento. Depois da morte da Manuel (1855), seu filho mais velho, Adão José de Carvalho, fundou a estância Califórnia, desmembrada dos campos de Yapeyu. No local, muita gente já andou em busca de tesouros escondidos pelos jesuítas, embora nada tenha sido encontrado até o momento. Essa fazenda, que tem um dos limites nas fronteiras do antigo cemitério de Touro Passo, foi arrendada em 1930 por meu avô materno, Ulisses Câmara Villar, recém-casado com a minha avó Nazy Serpa Villar.
Essa informação eu descobri porque, nos livros que estou usando como fonte para redigir essa crônica espichada com blocos de sumários, lá pelas tantas, encontro uma anotação de punho do meu avô, de quem herdei os dois volumes de Campos Realengos, obra clássica do historiador Raul Pont, pai do ex-deputado e ex-prefeito de Porto Alegre. Ali está dito que arrendou a Califórnia, embora ninguém na família saiba dizer ao certo, hoje em dia, o que ele fez durante o seu período de arrendatário, quanto tempo durou a aventura, e nem o que criou, ou cultivou, nas antigas terras jesuítas que depois foram ocupadas por portugueses e seus descendentes, de onde saíram muitas histórias sobre tesouros e assombrações.
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