"É A VIDA, TEM QUE SER"



Maria de Lourdes, minha avó paterna, dizia que o pito era o seu amiguinho da solidão, embora morasse a duas quadras de nossa casa e trabalhasse num posto de saúde, localizado a poucos metros de seu apartamento, onde convivia com colegas, algumas amigas. 

Meu irmão Roberto foi o "adorado da vovó". Ele ficava amuado quando ela vinha de Uruguaiana e fazia escândalo de beijos e abraços na chegada. Éramos pequenos, meu irmão tinha uns 9 anos e eu adorava rir daquilo. A velha, malandra, sabendo que ele ficava envergonhado, fazia de propósito: "Adorado da vovó!" - E corria de braços abertos em direção a ele, que tentava escapar. 

Minha avó era “cartomante”. Não sei desde quando, mas, lembro dela tirando a sorte das pessoas, era assim que chamavam as atividades oraculistas com cartas. Usava um baralho espanhol, conhecido no Brasil como baralho de truco. Muitos levavam a sério, outros debochavam. E a vó não parecia se importar, nunca cobrou de ninguém para jogar as cartas, talvez nem se levasse tão a sério, nunca saberei. Ela parou, disso lembro bem, quando viu a morte do irmão, meu saudoso tio-avô, Ângelo, com quem convivi infância e adolescência. Era como um avô, mais chegado até do que o vô Belmonte, separado da vó. Houve isso também, ela foi uma mulher separada no tempo em que as mulheres de casamentos interrompidos eram vítimas de preconceito. E criou meu pai sozinha. Técnica de enfermagem. Fez cursos e trabalhou com Raio X, bem antes de vir transferida a Porto Alegre, por meio de uma manobra política. Era funcionária pública. 

Depois de aposentada e morando perto de nossa casa, tinha então quase 70, sofreu uma queda. Quebrou a perna direita, operou, fixou pinos, perdeu um tanto da mobilidade e foi morar conosco. Eu ainda estava na casa de meus pais e passamos a conviver. O "adorado" morava sozinho, e quem estava ali para ajudá-la a fazer as coisas era eu (o Roberto recém-formado, ou no final da faculdade, não lembro com exatidão).

Por óbvio, com o tempo nos tornamos bem chegados e até cúmplices, eu e a velha. Ela me dava uns pilas, eu fingia que não percebia quando “me roubava” cigarros. Nem tragava direito; acendia, dava uns tapas e logo esmagava no cinzeiro. À noite, quando eu inventava comidas tipo carreteiro, ou arroz com linguiça, logo se apresentava na cozinha e ficava a postos. Apesar da recomendação médica em contrário, e da pressão de meus pais também, ela comia de tudo e os exames sempre davam em nada. Dê-lhe linguiça, salsicha, nacos de queijo, batata frita e não dava nada. Colesterol de atleta. Essas escapadelas gastronômicas, via de regra, ocorriam quando os meus pais viajavam à praia e nós dois tomávamos conta. 

Não tenho certeza, acho que ela morou conosco uma década e meia. Desse tempo, dez anos eu estava junto, dos meus 14 aos 24 anos. Ela gostava de ficar à janela, sabia todos os movimentos da rua. E assistia novelas, era eu quem ajeitava a sintonia fina da tevê (bairro Ipanema nunca pegou direito o sinal aberto, nós tampouco tivemos antena externa, salvo quando surgiram os canais UHF para MTV e TVCOM). A vó cismava com algumas de minhas namoradas, outras ela gostava e houve duas ou três que apelidou. “A Fiapo tá no portão”. Fiapo por magra. Ela tinha isso também, esse humor maldosinho que herdei.

Já no final da vida, pouco antes de ir para uma clínica, porque já estava precisando de cuidados profissionais, intensificou a reprodução de uma de suas frases prediletas, sempre para explicar os desígnios e fatalidades, felicidades e tristezas que passamos ao longo da caminhada terrena: "É a vida, tem que ser". 

Vó Lourdes morreu quando o meu sobrinho João Pedro, hoje com 22 anos, era recém-nascido. Eu anunciei a morte dela na família, avisei com uma semana de antecedência e, muito por causa disso, eu e o Roberto fomos visitá-la na clínica pela última vez. E foi batata, estava mesmo pela hora da morte, embora não houvesse doença, apenas velhice com todas as limitações e remédios que traz.  

Dia 8 de março, se viva estivesse, vó Lourdes teria feito 104 anos.

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