QUANDO O EXÉRCITO FOI PRENDER MEU AVÔ

Recém havia estourado o golpe militar de 1964. Quem estava na residência da Rua Treze de Maio, em Uruguaiana, não recorda a data com precisão, se os militares teriam ido prendê-lo no 31 de março, ou 1º de abril. Meu avô Ulysses Câmara Villar (1906 - 1996), ninguém sabe exatamente como, deduzo que foi por intermédio das redes de informação do antigo PCB (Partido Comunista Brasileiro), já estava avisado de que o Exército iria atrás dele. O velho era da direção estadual do partidão.

Naquela época, o vô era uma importante liderança subversiva na fronteira. Tinha acesso direto a pessoas como o Luís Carlos Prestes, que conheceu pessoalmente e com quem esteve mais de uma vez, chegou a fazer a segurança pessoal do “Cavaleiro da Esperança” em várias oportunidades. Houve um famoso comício dele em Uruguaiana, na década de 50, único encontro que ocorreu sem problemas no Rio Grande do Sul, porque já haviam quebrado o pau em Caxias e noutras cidades. O vô negociou com a direita, e alertou que não fizessem nada violento durante a estadia de Prestes, porque eles comunistas também estavam armados e iriam reagir à bala, caso necessário. Aliás, antes da revolução de 30, Prestes foi um dos líderes políticos exilados em Paso de Los Libres, no outro lado do rio Uruguai. Ele, Isidoro Dias Lopes e Baptista Luzardo, entre outros.

O início da história de Ulysses na política remonta à revolução de 1923. Gurizote aos 17 anos, comandou alguns peões de estância, responsável por esconder os cavalos e a maioria do gado nos campos da família, evitando a apreensão dos animais por requerimento da Brigada Militar, força bem equipada e melhor treinada que funcionava como um pequeno exército leal a Borges de Medeiros, então reeleito para o quinto mandato consecutivo, abaixo de muita fraude e violência. Meu bisavô, Manoel Villar, estava entre os opositores, Maragatos do lenço vermelho, e andava com Honório Lemes, o Leão do Caverá. 

Em dezembro de 1924, no combate de Guaçu-Boi, em Alegrete, as tropas de Flores da Cunha e Claudino Nunes Pereira venceram a coluna revolucionária de Honório Lemes, os poucos que restaram foram para a Serra do Caverá. Meu avô pegou em armas contra o general Flores da Cunha, apesar de ter frequentado a sua casa durante a adolescência, onde era tratado como “filho”. Após o entrevero do Guaçu-Boi, consta que o general ficou desesperado quando soube que Ulysses estava entre os sobreviventes em fuga. E não sossegou, enquanto seus emissários não lhe informaram que o jovem amigo estava são e salvo. Em 1932, novamente Ulysses estaria no lado antagonista àquele apoiado por Flores da Cunha, que permaneceu leal a Getúlio Vargas.

A POLÍTICA É DINÂMICA
Getúlio Vargas foi quem fechou a Aliança Nacional Libertadora, tornou clandestina. Meu avô participou da revolução que o colocou no poder, depois ingressou na Aliança. Ele ficou ao lado dos paulistas em 1932. Foi a primeira vez em que esteve preso na Casa de Correção de Porto Alegre, por causa do levante de São Paulo para implantar novamente a Constituição, após o golpe ditatorial.

Na Revolução Constitucionalista, aos 26 anos, revólver na cintura e fuzil a tiracolo, já casado com Nazy Serpa Villar (1909 – 1989), Ulysses embarcou na gare da estação férrea e partiu rumo a São Paulo. Não chegou a entrar em combate, mas deixou apreensiva a minha avó, que ficou em Uruguaiana com a filha Therezinha, de um ano, e grávida da minha tia Vilma, que em novembro de 2023 vai completar 91 anos muito bem vividos (ela é outra que rende boa literatura). Desconheço se a gravidez era conhecida no momento do embarque, mas, se eu um dia eu tornar isso ficção, com certeza não será de conhecimento do casal, antes dele partir.  

Anteriormente, para colocar o Getúlio Vargas no governo, o vô esteve no batalhão Baptista Luzardo. Em 1932, consta que ele não chegou a participar da luta, mas o trem onde estava foi atingido por granadas. O vô retornou a Uruguaiana, trazendo de volta o armamento disponível. Segundo ele, as armas foram guardadas na estância do meu bisavô. 

Passadas três décadas, aos 56 anos em 1962, Ulysses Câmara Villar concorreu a deputado estadual nas eleições de 7 de outubro (Aliança Republicana Socialista). Dos 36 candidatos da Aliança, foi o 20º mais votado, com 567 votos de um total de 33.135. Apenas um deputado foi eleito, Marino Rodrigues dos Santos, com 3609 votos (3010 em Porto Alegre e cinco em Uruguaiana). A maioria dos votos obtidos por Ulysses (476) veio de Uruguaiana, mas ele também teve eleitores em Quaraí (55), Porto Alegre (10), Pelotas (10), Santa Maria (8), Alegrete (7) e São Francisco de Assis (1), segundo os dados oficiais do Tribunal Regional Eleitoral (folha 516 do relatório das eleições de 7 de outubro de 1962).

CRIANÇAS NA CASA DA TREZE
Quando houve o golpe de 1964, o vô era titular de um cartório de registro de imóveis em Uruguaiana. Funcionava na casa da Treze, onde a família também residia. Ele teve cassada a sua titularidade do cartório, onde só cobrava de quem podia pagar. Antes do processo de cassação, foragido, exilou-se no Uruguai e, quatro anos mais tarde, saudoso da família, retornou para entregar-se aos facínoras. Foi preso e cumpriu temporada na carceragem do 8º Regimento de Cavalaria, em Uruguaiana, onde teria sido bem tratado. Durante o exílio, mais de uma vez foi visitado por familiares, inclusive a minha mãe.  

O endereço da Treze, atesta o meu primo Guto (Carlos Augusto Villar Trein), era ponto de encontro para reuniões políticas dos comunistas. Na época o partidão vivia uma grande fase. Guto, filho de minha tia Vilma, tinha um irmão mais velho e ambos moravam com a mãe na casa dos avós, porque ela torna-se viúva muito jovem. O irmão dele, Luiz Carlos, foi o músico Cao Trein, parceiro e amigo de Raul Ellwanger, Bebeto Alves e Carlinhos Hartlieb, entre outros que surgiram na cena musical gaúcha dos anos 70. O Cao também já faleceu.

Para receber a concessão do Cartório no governo Vargas, em 1939, Ulysses teve o apoio político de dois poderosos uruguaianenses: João Baptista Luzardo e José Antônio Flores da Cunha. Aliás, o primeiro discurso do meu avô foi dirigido aos ferroviários, em cima de um caixote, monitorado por Luzardo (relato que cheguei a ouvir dele, ninguém me contou). O experiente Centauro dos Pampas, chefe dos Libertadores em Uruguaiana, percebeu o sentido das palavras pronunciadas pelo jovem orador e mandou que descesse imediatamente do púlpito. “Não diz isso, menino. Isso é comunismo!”

Nos anos 30, meu avô chegou a ocupar um cargo público na prefeitura do Rio de Janeiro, cidade para onde levou a família e permaneceu pouco tempo, exercendo a função de Oficial de Gabinete do prefeito, padre Olímpio de Melo. Ao retornar para Uruguaiana, assumiu como Oficial de Registro de Imóveis (14/04/1939). Minha avó também foi nomeada, Ajudante do Oficial do Registro de Imóveis do Termo de Uruguaiana (27/081940), por ordem do Interventor Federal, General Oswaldo Cordeiro de Farias. Era ela quem carregava o piano no cartório, enquanto o meu avô fazia política, ou viajava em suas pescarias. Acredito que essas foram as duas maiores paixões do vô Ulisses, a política e a pesca, não necessariamente nessa ordem. Minha vó Nazy mourejou de tal forma que, até hoje, os mais antigos que ainda estão vivos na cidade, lembram dela como a “velha do cartório”.

Naquele fatídico dia em que a casa da família foi alvo do Exército Brasileiro, o vô estava escondido noutro lugar, mas ainda na cidade. Por cerca de um mês, aqui na fronteira, antes de ir embora para o Uruguai, coordenou a fuga de vários líderes do PCB. Fugitivos de outros Estados corriam para a Argentina e o Uruguai, onde permaneciam ou partiam para a Europa. Uma dessas pessoas, a informação ainda não pude confirmar, teria sido a irmã, ou um parente, do pintor Di Cavalcanti. Disfarçado de mendigo andarilho, meu avô circulou pela cidade nos dias subsequentes ao golpe, enquanto os militares o procuravam nos lugares mais óbvios. Não sei dizer quem lhe deu guarida, mas é certo que foi abrigado por amigos influentes, maçons inclusive, no breve período em que permaneceu oculto e operacional, antes de partir em definitivo para o exílio.

Na residência da Treze de Maio, além do Guto e do Cao, também estavam a minha mãe, Lígia Villar Belmonte (1946 – 2021), e a Elisabete Souza Alves, junto com a tia Vilma, duas tias da Elisabete já falecidas (Santa e Neuza), e a mãe dela, Rosa, hoje com 93 anos. Minha avó também estava, talvez houvesse outras pessoas, não consegui apurar com exatidão, passados quase 60 anos desde o episódio. Duas das crianças da casa, Guto e Elisabete, teriam ido à escola no período da manhã. Estudavam no Instituto Romaguera Correa, a mais antiga instituição pública de ensino da cidade, fundada em 1892. Nos idos de 1964, ainda não funcionava no prédio atual, inaugurado em 1972 na mesma Rua Treze de Maio.

Ao chegar em casa, as crianças toparam com o movimento dos militares. Os verde-oliva reviravam tudo. Eram cerca de 15 homens, entre praças e oficiais. Jipes e camionetes permaneceram estacionados defronte à casa. Foi um estardalhaço! Vizinhos em polvorosa, sedentos por novos assuntos para fofocar. Algumas horas antes, na tarde anterior, minha tia Vilma e a Rosa, junto com outras pessoas da casa, fizeram um mutirão e abriram uma vala enorme no meio do pátio. Ali foi incinerada a maior parte da biblioteca comunista do vô, cartas comprometedoras, muitas fotos e todos os livros que os militares poderiam achar suspeitos. A grande fogueira ardia, enquanto o menino Guto observava sem saber o que pensar. Para as crianças, explicaram que o Exército havia deflagrado “uma espécie de guerra” e o vô precisou fugir.

Dias antes, em 15 de março de 1964, numa emissora de rádio local, Ulysses já alertava para a iminência do golpe: "Vem de seriamente se agravar nestas últimas horas a crise política nacional. Temendo o pronunciamento livre e democrático das urnas em outubro vindouro, procuram por todas as formas e meios as forças reacionárias do país, sob a inspiração do Departamento de Estado Norte-Americano, tumultuar o processo democrático brasileiro, com o evidente propósito de instalar uma ditadura de direita. Uma ditadura terrorista! A bandeira de luta dos reacionários é a mesma que usaram para provocar a crise no governo Jânio Quadros. É a mesma que levantaram contra a posse do presidente João Goulart. É a mesma provocação que usaram nos boletins impressos espalhados por nossa cidade. É a esfarrapada bandeira do anticomunismo".

Meu avô permaneceu dois anos na carceragem do Exército, após quatro anos de exílio no Uruguai. Teve seus direitos políticos cassados e também perdeu a titularidade do cartório. Durante o golpe militar de 1964, mais de 200 comunistas foram presos em Uruguaiana. Boa parte deles apanhou de forma brutal e foi torturada. Houve até quem morreu.

Nota: Boa parte das informações que constam acima foram apuradas por meu irmão, o jornalista e professor universitário Roberto Villar Belmonte, durante entrevistas realizadas com o vô no ano de 1989, quando Roberto ainda era estudante da Famecos -PUCRS.

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