A CANASTRA REAL


Parece simplório, e talvez seja, mas os alimentos da alma também precisam ser processados e servidos como a papinha saborosa que as mamães oferecem aos bebês desdentados. Majoritariamente, ainda repetimos o homem imemorial. Apesar de cada vez mais tecnológicos, nossos anseios não mudam e as coisas que acontecem aos homens também se repetem. Muitos desejos trazem muito sofrimento. 

Dinheiro é apenas papel, ou virtual. Não tem valor em si mesmo, se não atribuirmos a ele um significado. É como um Deus nas religiões. Na Antiguidade, para determinadas crenças pagãs, o arco-íris era um sinal da aliança entre os homens e o intangível. A luz branca atravessa as gotas de chuva e a refração faz o espectro de cores, mas na verdade é ilusão de óptica, depende da posição de quem enxerga.

Eu queria ser humilde o tempo inteiro. Gostaria de ser justo, sem a falsa moralidade do imparcial utópico. Quero ser mais espírito, mas a matéria me puxa para baixo a todo instante. Os limites da minha ética e bom-mocismo terminam nas fronteiras da fome. Do outro lado é a mendicância. Estou vivo, afinal. 

Todos têm direito ao sonho, mesmo utópico. Desejar para o tempo de algumas décadas, por exemplo, a correção de todas as imperfeições e injustiças que decorrem da miserável condição humana, ao longo da história da humanidade. A vida é como uma canastra em que as cartas serão, obrigatoriamente, mal embaralhadas. Haverá sempre alguém que já inicia com o jogo pronto, ou bem encaminhado. Outros receberão os coringas que, no momento certo, com habilidade e senso de oportunidade, serão encaixados como trunfos. O resto precisa correr atrás, trocando cartas, comprando do baralho e o que estiver à mesa, sempre que possível, fazendo pontos até, eventualmente, chegar mais perto dos que têm sorte desde a primeira rodada.

O mundo adulto, em alguns momentos, repete o que vivemos na infância. Eu nunca conheci uma criança mimada, pereba e dona da bola, que abrisse mão de estar em campo, mesmo atrapalhando o time e até fazendo gols contra. Os donos da bola são sempre bajulados e lindos, mesmo egoístas, tirânicos e feios. O faz-de-conta não existe, nem esse mundo em definitivo, mas as duas coisas se tornam reais pela mesma via, dentro de nós. 

Existem autores de vida pacata e obra densa. Há escritores com vidas intensas e obras nulas. Outros têm vida e obra intensas. Existem os que escrevem como se nunca houvessem escrito. Ainda não cheguei, estou sempre a caminho. Eu sou o que sou, sem nunca ter sido. Quem pensou ter me visto, não era eu. Quando me viram eu já havia passado. Se olharem para trás, nas curvas do tempo imemorial, de lá virei outra vez, sempre despercebido. 

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