DOZE PAICAS

Conto publicado originalmente em livro. Coletânea FATAIS, editora Casa Verde; 2005. 


01
Véspera do anúncio oficial. Morales encerrou a reunião com os editores do jornal e foi direto pra casa. Faltavam quinze minutos para a meia-noite. No caminho, enquanto dirigia, procurava a maneira menos traumática de encaminhar as deliberações recém-aprovadas pelo Conselho. Nos últimos meses, desde que fora nomeado presidente da comissão, responsável pela reformulação do parque gráfico, todos os momentos do seu dia eram dedicados ao trabalho. Naquela noite, não encontrou a mulher na sala, assistindo à tevê. Não a encontrou em nenhum lugar da casa.

02
Nogueira passou boa parte da noite acordado, pensando. Clareava o dia quando adormeceu. Perdeu a hora, chegou atrasado no jornal. O resto da manhã parecia interminável. Pela primeira vez, desde que assumira o cargo de editor-chefe, desejou nunca ter saído da redação. Salário diferenciado e status de diretor, para ele, não estavam compensando a parte administrativa do ofício, repleta de burocracias, rotinas maçantes e incomodativas. A partir do momento em que começou a ascender na empresa, afastou-se dos amigos e os antigos colegas passaram a tratá-lo de maneira esquisita, meio artificial.

03
Cícero saiu de casa logo após o almoço. Desde 1976, quando começou a trabalhar no jornal, cumpria todos os dias a mesma rotina, de segunda a sábado. Era um dos raros profissionais que ainda utilizava papel, lápis e régua de paicas para diagramar o jornal e elaborar o planejamento gráfico dos cadernos e das editorias. Foi o responsável pela montagem de algumas capas históricas. Primeira visita do Papa ao Brasil, agonia e morte de Tancredo, impeachment de Collor.

04
Morales avisou as secretárias: não atenderia ninguém nos próximos vinte minutos. Acabara de chegar de uma reunião-almoço com o governador, junto com executivos de outras empresas de comunicação. Trancou-se no escritório, fechou as cortinas e iniciou um ritual que vinha se tornando cada vez mais frequente. Do bolso interno do impecável traje italiano, retirou um pequeno embrulho de papel alumínio, redondo, preso por um clipe. Abriu com cuidado, apesar de trêmulo, deixando cair sobre a mesa uma pedrinha branca, com pouco mais de um grama de cocaína. De uma gaveta, retirou um cartão de crédito vencido e começou a raspar a pedra, pacientemente, esfarelando a droga. Com o cartão, juntou o conteúdo desprendido, dissipou os grânulos e afinou o pó. Ao final, esticou quatro grandes carreiras, retirou da carteira uma nota de cem reais, enrolou um canudo e cheirou.

05
Até aquele momento, nenhuma alteração fora anunciada em caráter oficial. Nogueira almoçou sem vontade, sozinho, no refeitório da empresa. Notou que alguns olhavam desconfiados, cochichavam. Outros fingiam comer de forma displicente. Terminou o bife de fígado acebolado, dispensou o sagu da sobremesa e foi direto ao caixa. Guardava o troco na carteira quando percebeu o editor de esportes junto à porta de saída. Tentou evitá-lo, simulou pressa. O homem veio atrás. Perguntou sobre os ajustamentos, se estavam definidos e quais seriam. Nogueira desconversou.

06
No ônibus, a caminho do jornal, Cícero ia conversando com o cobrador, velho amigo de infância e vizinho do bairro. O homem comentou que estava pensando em financiar um computador para o filho. Cícero explicou que não entendia muita coisa de computadores, tinha dificuldade até em mexer no telefone celular, mas poderia informar-se no jornal. O cobrador agradeceu. No resto do trajeto, discorreu sobre as habilidades do filho, e de como o guri aprendeu a navegar na internet, utilizando o equipamento e a conexão do cunhado rico.

07
Sentado atrás de sua mesa, agitadíssimo, fumando um cigarro atrás do outro e bebendo litros de coca-cola, Morales passou a tarde reunido com diretores e acionistas. Nos minutos de intervalo entre cada audiência, foram nove ao todo, urinava no banheiro anexo e pedia ligações para casa. Não conseguiu falar. Ninguém atendeu. O mais entediante no trabalho eram as estatísticas, as projeções e os relatórios de desempenho. Difícil explicar. Resultado é a palavra de ordem.

08
Carregando um envelope de papel pardo, tamanho ofício, Nogueira deixou a sala refrigerada. Queria ter conversado mais com o Morales. Precisava entender os objetivos para conseguir explicar as razões. Tentou fazê-lo compreender que havia um clima tenso no ar, as pessoas estavam desconfiadas e até o ritmo de trabalho fora alterado. Voltou para a redação e começou a chamar um por um. Dentro da sala envidraçada, enquanto ia falando com os funcionários relacionados na lista, podia enxergar a expressão das pessoas do outro lado. Surpresa, contrariedade, indignação. O resto da tarde foi maçante. Teve azia, dor de cabeça e uma violenta sudorese.

09
Vibrou o celular no bolso da calça. Cícero acabara de entrar na sala envidraçada. Reconheceu o número de casa no visor do aparelho. Pediu licença para atender. Soube que o assunto era importante. Estava em reunião, mandou que ligasse mais tarde. A mulher insistiu, ele desligou. Desculpou-se com o chefe, aceitou o cafezinho com adoçante e começou a ouvir o longo discurso. O problema, no seu caso, é que a nova rotativa seria conectada diretamente à redação, eliminando por completo a diagramação em papel. O editor-chefe ainda lembrou os cursos de reciclagem custeados pela empresa, que ele não fez, mesmo sabendo que um dia o Parque Gráfico seria reformulado. Cícero, quando deixou a sala, percebeu que era observado pelos colegas. Caminhou de volta a sua mesa, sentindo o celular vibrando no bolso da calça. 

10
Morales conseguiu chegar mais cedo, depois de muito tempo. Procurou no quarto, na casa toda. A mulher não estava. Praguejou, amaldiçoou e teve um súbito achaque de fúria. Rasgou roupas, esvaziou vidros de perfume, quebrou o salto dos sapatos de grife. Em seguida, pegou o telefone sem fio e tentou ligar reiteradas vezes. O celular dava sempre na caixa-postal. Depois de um tempo, quase resignado, bebeu um litro de uísque e adormeceu na sala, esperando.

11
Nogueira dormiu mal. Teve pesadelos, acordou diversas vezes ao longo da madrugada. À noite, quando chegou do trabalho, foi direto ao banho. Depois, tomou um prato de sopa e se deitou. Não percebeu as intenções da mulher. E ela ainda fez questão de dizer, mais de uma vez, que as crianças estavam ferradas no sono. No outro dia, quando acordou, estranhou o azedume logo de manhã cedo. Achou que fosse uma crise de TPM e tratou de sair de casa. Ofereceu-se para levar as crianças no colégio. Chegou cedo na redação. Em frente ao prédio do jornal, encontrou um piquete do Sindicato dos Jornalistas, com carro de som e uma deputada do PC do B discursando contra os “barões da imprensa neoliberal”. Na entrada foi vaiado por ex-funcionários. Sindicalistas e o pessoal que entrou no aviso prévio.

12
Cícero simulou tranquilidade. Deixou a sala envidraçada e retomou as tarefas que largara antes de ser chamado. Percebeu o olhar insistente dos colegas, misto de pena e solidariedade. Um repórter fotográfico e o editor de polícia vieram conversar, os dois na mesma situação. Soube da manifestação que estavam preparando para o dia seguinte. Em casa, preferiu não dar a notícia, por enquanto. Reclamou do cansaço, declarou mal-estar. A mulher não insistiu, apesar da urgência. Naquela noite, dormiu sem dizer à esposa que acabara de entrar no aviso prévio. Também não ficou sabendo que a neta de quinze anos estava com dois meses de gravidez.



O que disseram sobre o conto, na introdução da obra: 
“Caco Belmonte mostra homens decididos de maldade. A rotina de um jornal no dia de demissões em três estratos sociais. Um cigarro na mão para torturar com queimadura. Ponto Alto.”

Fabrício Carpinejar




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