Aqui estou para te falar do que não pode ser dito em palavras, exatamente como vinha acontecendo nos últimos anos, talvez de forma intuitiva, para que fosses abrindo um espaço em teu espírito e isso te permitisse, eventualmente, pensar a respeito de uma existência além da vida.
Numa quinta-feira ensolarada, estivemos à beira-mar e espalhamos as tuas cinzas no oceano, conforme havias sugerido mais de uma vez, muito antes de sermos atropelados pelos desígnios do inominável. Estoico, fiquei sozinho a teu lado nos momentos finais. Também fui eu quem entrou nas águas geladas do Atlântico para dispersar o que restou do traje biológico ocupado por tua energia essencial, ao longo de 23 377 dias, período que corresponde aos 75 anos completados por ti, dois dias antes de cruzares a “fronteira”.
Ainda não cheguei, mas estou a caminho. Eu sou o que sou, sem nunca ter sido. Quem pensou ter me visto, não era eu. Quando me viram eu já havia passado. Se olharem para trás, de lá estarei vindo outra vez, sempre despercebido.
Algumas pessoas paralisam, mas a vida se encarrega. Meu irmão Roberto e o filho, teu neto João Pedro, viajaram comigo e o pai. Os três, desacostumados a lidar com o lado paradoxal da existência, inoperantes nos portais de acesso à vida enorme, estiveram anestesiados o tempo inteiro, entorpecidos por uma emoção inédita. Tu nunca havias morrido.
Inescapável, a grande aventura de todos os tempos que ainda nem vieram. Encontro o rumo perdido nos pontos cardeais. Rosa dos ventos místicos interiores. Na aurora as pontes se abrem para os marinheiros que navegam. Ao entardecer, continuam levantadas a quem alcançou certa percepção. Os demais não vencem as ondas gigantes. Correntes violentas, empurrando por baixo em direção contrária, impedem o avanço seguro. Muitos fazem água durante a travessia e naufragam.
O Deus dos cristãos, existe? E se existe, eu acredito? Sim, como criação do homem para designar aquilo que está além da compreensão. O que não invalida o inominável. A fonte criadora pode ser múltipla, mesmo que a ciência ainda esteja distante de resposta satisfatória aos próprios cientistas. A ideia do ente criador único atrapalha o entendimento. Precisaríamos, talvez, pensar num todo que faz o miúdo e a miudeza move esse conjunto. São inseparáveis, embora incompatíveis, por isso mesmo paradoxais. Existirmos, a que será que se destina? Se acreditar que decifro, já estarei errado. Está além do que eu seria capaz de apreender. “Estou numa ignorância terrível de todas as coisas”, disse Pascal. Aquilo que nos guia deveria ser um farol, ao invés de luz ofuscante.
O faz-de-conta não existe, nem esse mundo em definitivo, mas as duas coisas se tornam reais pela mesma via, dentro de nós. Para os Astecas, foi a deusa Coatlicue que deu à luz e fez surgir lua e estrelas. Para os hindus, o deus Brahma sentou-se sobre uma flor de Lotus e criou a terra e os céus. Na mitologia chinesa, a fera peluda Pangu surgiu do ovo cósmico e dividiu as forças Yin e Yang na terra e nos céus. O mito mais antigo, talvez, seja o Enûma Elish, com cerca de 4 mil anos na antiga Babilônia, hoje Iraque. Fala da grande batalha entre Tiamat, deusa primordial das águas salgadas, também associada à serpente marinha ou dragão, eventualmente o caos primordial, versus o deus Marduk que tem visão quádrupla, aura e força de dez deuses (muitos ao mesmo tempo, portanto), além de ser insondável e impossível visualizar, embora perceptível.
Gosto de pensar nos algoritmos, eles me levam a refletir em termos imponderáveis: números são da natureza e foram apreendidos pelo homem. Números são enfiados em fórmulas criadas pelo homem. As fórmulas são maneiras de provar em números, que “não mentem”, aquilo que desejamos afirmar de forma inapelável. Se os números “não mentem”, podemos depreender que eles divergem, porque surgem resultados derivados de formulações criadas por outros homens que desejam desacreditar aqueles primeiros, ou demonstrar outras coisas. Os números são da natureza e foram apreendidos pelo homem. Já os códigos são do homem e, por essa razão, fáceis de quebrar. Se “tudo é o acaso”, como é que os números vieram da natureza com tanta lógica?
Será que algumas coisas são desvendáveis? Será que o nosso instrumento pensante, que os materialistas designam cérebro e outros alma manifestada por meio do cérebro, estaria apto para abarcar os mistérios do universo e da vida? Nossa arrogância acredita que sim. Na natureza, algumas coisas fogem à regra.
De acordo com a OMS, ter saúde é usufruir de um bem-estar psíquico, biológico e social. Segundo eles, doença é uma produção do próprio ser humano que adoece ao ser influenciado pelo mundo exterior. Considerando esse pressuposto, entendem a somatização como uma ação sobre o corpo (soma = corpo), nada mais do que a representação física do desequilíbrio psíquico e biológico do indivíduo. As representações psíquicas, ou seja, experiências emocionais do indivíduo em seu contexto social, exercem um papel central no processo, através de sintomas físicos cuja origem não é explicada pelas ciências médicas. Por esse motivo, considerados de origem emocional. O que a ciência designa emocional, amplio para emocional e espiritual, energético.
Uma oração pode ter efeito terapêutico? Em alguns casos, o cigarro de maconha é menos danoso do que as drogas que os psiquiatras receitam para aplacar os sintomas das síndromes de modernidade (pânico, sobretudo). Usamos o álcool para confraternizar. Parece que não nos bastamos de cara limpa o tempo inteiro. Materialistas encontram explicação para isso nas carências de certas substâncias químicas necessárias ao bom funcionamento dos corpos e cérebros de quem sofre determinadas doenças comportamentais. Eu prefiro entender como uma crise global do espírito. Alma e espírito são os maiores presos políticos na história recente da humanidade. Se retirássemos a lua de seu lugar “lá em cima”, por óbvio, logo iríamos perceber os efeitos deletérios redundantes “aqui embaixo”, sem o efeito gravitacional do satélite junto ao planeta. E o mesmo acontece quando vivemos sem alma, ou propósito, desconectados de nós mesmos.
A esperança é furta-cor. Precisamos morrer em vida? É o quê mesmo, isso tão estimado? A glória, a grana, o leite que mamãe não deu? Zinabre, a vida lambuzou a crueza das ruas em nossas almas. Eu não faço nada esperando receber. Eu faço porque sou movido, entendo que devo fazer. No meu planeta idealizado, crianças irão nascer e não serão recebidas com kits de camiseta e badulaques dos clubes futebolísticos afetivos de seus pais. As famílias e os adultos, no entorno do nascituro, estarão ansiosos pelo momento sagrado: iniciar a nobre tarefa da educação, domar o espírito frágil e transformá-lo, pela filosofia e o estímulo sensorial do corpo, educação física sobretudo, numa alma sólida como rocha. O filho do Cosmos, auxiliado pela generosidade de quem o precedeu, fará emergir do caos uma fortaleza menos sujeita ao sofrimento desnecessário.
Apesar das bolhas que se formam em torno da idiotia, coisas maravilhas acontecem a todo instante. Apenas o fato de ainda estarmos vivos deveria ser, no mínimo, interessante. Um flerte com o profano e a cela lúgubre torna-se viva. Da caverna proibida as mãos surgem umedecidas de sumo, e ali está o eterno.
Atrás de nossa casa em Ipanema corriam as águas do Arroio Capivara, que desemboca no Guaíba, que deságua na Lagoa do Patos, outrora conhecida como Mar Interior e que termina no Oceano. Eventualmente, podemos criar uma daquelas palavras compridas impronunciáveis de certas línguas. Português não tem a mesma dinâmica, improvável irmos tão longe em significado com apenas uma palavra. Algumas coisas são verdadeiramente impossíveis de registrar em símbolos, teríamos de adentrar outras formas de comunicação, percepções que aferissem a frequência de vibração do pensamento. Uma visão que nos mostrasse essa energia em plena atividade, refletindo cores que iríamos reconhecer e traduzir. Acabaria a falsidade.
Os que vieram antes, e bem antes ainda, davam um sentido maior às coisas que hoje relevamos. Retiramos o valor do menor, que agrega e preenche espaço no vazio. Falta espírito na “equação”. O mesmo acontece com as pessoas, quando nos atocham o mundo sem alma ou propósito maior, para além do lucro e dos títulos inventados pelo homem.
Alguns dizem que a “própria cabeça” é uma coisa difusa, talvez nem exista, porque seríamos um amálgama de todas as cabeças e pensamentos anteriores, mesmo aqueles já esquecidos, mas que ainda estão no inconsciente coletivo. Também há os que não validam nada disso, nem mesmo o livre-arbítrio, ou alma, apenas cérebro e reações químicas, porque seríamos meros reflexos condicionados e tomamos decisões aprisionadas, mas achamos que estamos plenos e conscientes com a nossa “própria cabeça”.
Não me incomoda a pecha de tolo sincrético. Quando falam em depressão, para além do que é científico e reconhecido, imediatamente acende uma luz de alerta em mim. O espírito quer ajuda, o espírito pede atenção, o espírito quer ser reconhecido espírito. Um dia saberemos toda a verdade? Creio que não, toda a verdade é inacessível. Os mistérios imponderáveis que remetem à origem da vida, por exemplo. Segredos do universo que ainda não deciframos, e estamos muito longe de fazê-lo, se é que um dia iremos conseguir. Quem lê pouco, entende pouco. Quem não lê, não entende nada. Majoritariamente, repetimos o homem imemorial. Apesar de cada vez mais tecnológicos, nossos anseios não mudam e as coisas que acontecem aos homens também se repetem. Muitos desejos resultam em muito sofrimento.
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