Personagens ressurgem, histórias de outros tempos ganham novos desdobramentos. Revisito esse material bruto e o adapto. Para quem não escreve literatura fantástica, ou ficção científica, sobre monstros e mundos mágicos, essas modulações da vida real desaguam na verossimilhança perseguida por autores e roteiristas bem-sucedidos, quando empolgam aos leitores ou espectadores, que respondem com empatia à mensagem. A mesma sequência de informações, narrada sem o viés literário do escritor, ou longe da imagética dos diretores de cinema que trabalham a realidade adaptada, torna-se um episódio insosso.
Para muitas pessoas, a paisagem urbana é cenário desinteressante ao longo do trajeto que percorrem cotidianamente em suas rotinas. O que vou narrar adiante, visto pelo olhar desatento do transeunte apressado, seria a miséria sem identidade. Pobreza anônima, avaliada de passagem com olhos curiosos e sincera empatia que dura breve instante. Comiseração de corações endurecidos pelo hábito da observação cotidiana de tragédias distantes, impessoais e descartáveis, fruto da voracidade dos veículos de comunicação, que industrializam as notícias repassadas com urgência a pessoas sequiosas por informações e novidades, curiosidade, variedades. Superficialmente, sabemos de tudo um pouco. E a notícia de ontem é velha. Muitos dramas persistem, embora esquecidos no dia seguinte, ou pouco mais do que isso.
O ano era 2020, auge da Covid 19. Coincidentemente, desde 2015, eu já estava acostumado ao home office porque, quando se iniciou a pandemia, não tinha emprego há cinco anos. Trabalhava em casa, freelancer. Após ter sido regurgitado pelo mercado formal, precisei me reinventar. Havia empobrecido, na comparação comigo mesmo. Passei a viver com menos da metade da renda mensal anterior, mas ainda o suficiente para manter uma estrutura minimamente necessária.
Na classe média, quem ainda tem dinheiro sobrando economiza. Não por acaso, a Caderneta de Poupança é a modalidade de investimento mais acessada pelos brasileiros, apesar de render menos do que os outros produtos bancários. O remediado, do tantinho faz milagre. Final de mês, recebemos a cobrança das dívidas materiais. Quase ninguém nos intima no “Cartório da Consciência”. Para muitos, o imaterial não tem valor. Ao mesmo tempo, convivemos pacificamente com o legal imoral.
Um amigo de infância foi empresário no ramo da alimentação. Vendia lanches, especializado em baurus. Hoje, atua noutro segmento. Possui uma casa de eventos, sedia festas de casamento, formaturas, noivados, quinze anos de meninas adolescentes. Do tempo em que trabalhava com comida, resguardou “segredos industriais”. Para os consumidores, jamais revelou a procedência dos bifes suculentos que vinham nos lanches. O insumo era adquirido em bairro periférico, distante das regiões nobres da cidade. Um lugar superpovoado com infraestrutura precária, violento por causa das facções criminosas, mas com açougues e minimercados que vendem sem a margem de lucro exorbitante praticada nos comércios dos bairros valorizados.
A geladeira e a cannabis recreativa nos levam à periferia. Motivos solenes nos conduzem por caminhos mal-afamados. Em Porto Alegre, conheço proprietários de residências espaçosas em nobres loteamentos das zonas Sul e Extremo-Sul, que costumam buscar cerveja e carne mais em conta nos comércios da Cohab Cavalhada. No bairro Cristal, onde residi por 24 anos, entre o edifício em que morava e o Wall Mart Barra Shopping Sul, existe um supermercado de porte médio. Opera em cadeia com outros medianos, independentes sob uma bandeira em comum. Possuem lojas na Capital e cinco cidades da região metropolitana. Fazem enormes compras em conjunto, por isso têm condições de rivalizar em preço com as grandes redes.
Durante a pandemia, por causa da minha situação, pessoa sem carteira assinada ou emprego estatutário, cheguei a receber o Auxílio Emergencial de seiscentos reais. Não era grande coisa, mas complementava a minha renda. Gastava tudo em comida. Percorria o trajeto de alguns quilômetros, caminhando rumo aos supermercados. Costumava atalhar pela Avenida Divisa, então em obras que se iniciaram antes da Copa 2014. Por ali, ainda hoje, existe um daqueles armazéns à moda antiga. Vende sortido a preços convidativos. Cerveja gelada, leite em caixa, pães e biscoitos, cigarros, produtos de limpeza, itens de ferragem, ração para cães e gatos, arroz, feijão, enlatados, um pouco de tudo. No entorno do estabelecimento, que também serve cachaça aos biriteiros escorados no balcão, existe uma riqueza de tipos humanos. O proprietário, por exemplo, homem que veio do interior e mantém um sotaque característico da fronteira com a Argentina, atende com a caneta Bic presa na orelha direita, mesmo lado da mão que escreve. Com garranchos, rabisca suas contas no verso dos papéis de pacotes de cigarros. Serve tragos e apanha os produtos das prateleiras atrás do balcão, longe da clientela. Haveria quem os roubasse, se estivessem ao alcance das mãos e à mercê da ocasião.
Naquele dia específico de 2020, enquanto cruzava por ali, percebi um ajuntamento na calçada defronte ao armazém. Ao passar, vislumbrei o homem caído, parecia desmaiado. Aglomeração de gente curiosa à volta. Ninguém usava máscara de proteção. “A mina deu um rapa e chutou a cara do bebum”, escutei alguém explicando. “Coisa ruim não morre fácil. Esse Alemão da Lata ainda vai longe”, outra pessoa comentou. Ao escutar e reconhecer o apelido do ser humano sobre quem falavam, olhei mais uma vez para a figura esgualepada e não identifiquei o homem vigoroso que conheci, trinta anos atrás. Estava magro, velho, em andrajos. Diferentemente do conto escrito por mestre Dalton Trevisan, aquele corpo no chão denominado Alemão da Lata, ao invés de Dario, o personagem que caiu morto na rua e, aos poucos, teve roubados seus pertences, nada oferecia à subtração.
E aqui retorno ao início da narrativa, quando aludi a velhos personagens em novos contextos. Cotidianamente, estamos a um passo do mau passo. Titubeamos e somos arrastados à trilha da idiotia. Trocando as bolas, fazemos do vício uma virtude. Algumas das melhores literaturas surgem de nossa dor, ou quando nos despimos de nós mesmos e nos colocamos na pele do outro. Escrever do umbigo feliz é simples. Cavoucar nas próprias entranhas e do mundo à volta, trabalho para cirurgiões da alma. Não conheço ficcionista mais criativo do que as circunstâncias e situações que a própria vida nos impõe, ao longo dos anos. Nunca ouvi falar de autor bem-sucedido que não fosse, ao mesmo tempo, um paciente observador atento.
O Alemão da Lata que conheci, três décadas atrás, me remete aos tempos de juventude, época em que frequentei lugares malditos. Ele era ajudante de ordens, misto de guarda-costas e braço direito de um falecido traficante, cujo nome vou omitir com pseudônimo. Roberto, ex-policial militar, enveredou na senda criminosa e, durante anos a fio, manteve um estabelecimento comercial de fachada, desses bares gradeados que só admitem o ingresso de conhecidos. Traficava sob o disfarce das cervejas geladas e mesas de sinuca.
Alemão da Lata, cujo verdadeiro nome eu nunca soube, recebeu esse apelido por causa do famoso navio australiano Solana Star, que surgiu na costa brasileira com milhares de latas de maconha, vindo de Cingapura. O famoso episódio da crônica policial ocorreu em setembro de 1987, mas continuou ao longo do verão de 1988. Trazia a bordo uma carga preciosa, o Thai Stick, violenta cannabis índica de origem tailandesa. Quinze mil latas de um quilo e meio.
A intenção dos tripulantes era chegar no litoral Norte do Rio de Janeiro, onde a mercadoria seria distribuída para dois barcos com destino aos Estados Unidos. Quando já estavam em águas brasileiras, a Polícia Federal recebeu um comunicado do governo norte-americano, informando sobre o navio dos traficantes. A tripulação desconfiou que o barco estava visado, as latas foram dispensadas no oceano.
Do volume total atirado no Atlântico, menos de três mil latas foram apreendidas pelas autoridades, entre o final de 1987 e meados do ano seguinte. O resto fez a festa dos usuários nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde a polícia chegou a apreender nove unidades. Muitas das pessoas que encontraram as famosas latas, sequer conheciam maconha. Não era o caso do Alemão da Lata, felizardo que recolheu um exemplar intacto nas areias da praia do Cassino, em Rio Grande, milhares de quilômetros distante do ponto em que foram atiradas ao mar.
E naquele dia, afinal, o que houve com o Alemão da Lata? Para dizer a verdade, desconheço. A última imagem que recordo é do cachorro de rua. O animal cheirava a bunda do homem descalço atirado ao léu, caído na sarjeta com a sua camiseta cheia de furos e a calça de moletom arriada, “cofrinho” à mostra. Vergonha exposta para coroar a decrepitude dos caídos e a sordidez das plateias. Não sei o que aconteceu depois, nem cheguei a interromper a caminhada. Apenas observei a situação e segui em frente. “Piedade de leão”, diria Clarisse Lispector.
Comentários