A CONCRETUDE DO IMPONDERÁVEL

Estive na praia faz alguns dias. Com um livro de Fritjof Kapra na mochila, sem o smartphone, caminhei à beira-mar. Junto à foz do rio Tramandaí, subi as dunas e me sentei à sombra miúda, debaixo da pequena casuarina semienterrada. Fiquei entre leituras e vislumbres de paisagem. Pescadores corriam atrás do boto enorme. Tarrafas capturavam as tainhas que o cetáceo perseguia e empurrava em direção aos homens. Trabalho em equipe, biólogos estudam esse comportamento dos animais.  

Àquela altura, enquanto observava a pesca artesanal, duas crianças vieram em minha direção. Queriam o refúgio assombreado, deram a entender que eu chegara antes, o local lhes pertencia. "Putz, já tem um homem na nossa sombra do deserto”. Fizeram meia-volta, frustradas. Também eu pensava metaforicamente, angustiado na gravidez da escrita, embuchado com algum texto dentro de mim, talvez crônica, mas nenhuma ideia concreta para trabalhar.  

Às vezes, escrevo um suco maluco que sai de mim. Procuro apurar a técnica, criar algo parecido com estilo próprio. O eventual engessamento da minha criatividade não é consequência dos estudos acadêmicos que venho fazendo, embora seja necessário produzir de acordo com os gêneros existentes e as tendências do momento para, eventualmente, alcançar algum reconhecimento como escritor avalizado por instituições. O que é isto, afinal?  

Para além da vaidade, quando procuro entender o que move um poeta ou prosador, penso nas coisas que me pegam pela alma e arrastam àquele mundo de sonho abandonado, a saudade do que não tenho lembrança e resiste, ainda que haja passado o tempo uma vida, de todas as vidas de todos os homens, até o último dia da criação. Se eu não tivesse alma, apenas reflexos condicionados, pensaria naquilo que me realiza e preciso fazer a qualquer custo, sob pena de murchar, morto-vivo. O ato de necessidade fisiológica, força anímica que me movimenta.  

A vida é cheia de maratonas e situações com desfechos inesperados, muito além da capacidade inventiva dos autores ficcionais. São intervalos a marco, como num filme, quando o diretor interrompe a cena principal e retorna no tempo em flashback, onde o espectador apreende uma breve explicação, sem a qual o desfecho seria nebuloso e o roteiro falharia, incompreensível por mal-acabado.  

Em todos os lugares surgem esses escribas, ou cronistas, poetas, o nome é indiferente para uma mesma função inata. O contador de histórias remonta às tradições milenares de povos africanos, asiáticos, no oriente médio e entre os ameríndios. Nos confins do altiplano inca, nas selvas maias ou planaltos astecas, onde quer que seja, em qualquer tempo, o homem sempre vai manifestar o verbo. Se a palavra é a arma mais poderosa da criação, escrevo porque me reconheço criatura.  

Arte pressupõe conflito, estranhamento. Se existem zoofilia, pedofilia e outros comportamentos doentios, como retratá-los? Vivemos a idiotia da modernidade. Cientistas, pós-doutores, engenheiros de diversas áreas dedicaram anos de pesquisa e trabalho árduo para desenvolver as ferramentas que hoje nos conectam. Apesar disso, parcela significativa dos usuários não sabe utilizar os recursos disponíveis, ou utiliza para compartilhar pornografia e abobrinhas, mentiras no WhatsApp.  

Viver é uma caminhada na corda bamba sobre o abismo. Lá embaixo as fossas abissais da tirania, ignorância, intolerância, deselegância, prepotência e assim por diante. Não temos controle sobre muita coisa. O imprevisto pode topar conosco numa esquina. O destino surge da imprudência, ou imperícia de terceiros no trânsito. Ao dedicarmos boa parte do tempo à construção e manutenção do personagem que criamos para atender aos anseios do mundo, deixamos meio de lado a essência do viver.  

Sabemos que o homem é o único animal que tem consciência da própria finitude. Ao mesmo tempo, velhos elefantes e outros bichos se afastam de seus grupos para morrer, mas a ciência nos garante que é instinto, programação genética surgida por acaso, ao longo de milênios na evolução das espécies. Eles ainda não sabem em definitivo, mas acreditam que seja porque, nos critérios científicos, tudo indica que é assim.  

Em nome do progresso, podemos continuar fazendo as mesmíssimas coisas? O progresso maltrata com outorga e a humanidade avança num trem desgovernado. Cientistas analisaram ossadas e restos de tecido humano com mais de dois mil anos. Foram comparados a contemporâneos nossos. A análise dos elementos químicos indicou a hipótese de que o pessoal antigo, aquele grupo específico, pessoas comuns encontradas nas covas sem indício de nobreza, em vida gozou de muito mais saúde do que a outra amostragem. Considerando que não existe corpo saudável com a mente em pandarecos, é possível supor que, eventualmente, teria sido mais fácil ser feliz sem a parafernália tecnológica que hoje nos escraviza.  

Algumas coisas estão além da compreensão, apesar da arrogância humana, que acredita sermos capazes de alcançarmos a "verdade" definitiva, inclusive sobre a complexidade da vida, ainda explicada pela quase bicentenária teoria evolucionista. Os maiores presos políticos na história recente da humanidade são o espírito e a alma, a "divindade" adormecida em nós. No dia em que alguém conseguisse entender o inominável, aquilo que os homens precariamente designam como o "Deus", no instante em que alguém conseguisse decifrá-lo, a partir daquele momento ele já não poderia ser o "Deus". Parece que o mistério está entre nós, em ambos os sentidos da palavra, nós pessoas e nós amarrações que precisam ser desfeitas.  

Os números são da natureza e um dia foram apreendidos pelo homem. As fórmulas vieram do homem, algumas podem ser contraditadas. Novos homens surgem com resultados diferentes e acabam revogadas as formulações anteriores. Isso é ciência, mas os cientistas também divergem em muita coisa. Um dia saberemos toda a verdade? Creio que não, toda a verdade é inacessível ao homem. Poderemos saber das coisas do homem, não de toda a verdade encoberta, dos mistérios imponderáveis que remetem à origem da vida, aos segredos da mecânica do universo.  

Algumas pessoas dizem que não existe o livre-arbítrio, somos movidos por reflexos condicionados, sem alma ou espírito, apenas "algoritmos" determinados pelo cérebro. Ou seja, tomamos decisões aprisionadas e achamos que temos o livre-arbítrio. É uma visão materialista, embora alguns cientistas caminhem em direção a outros territórios, teorizando e pesquisando sobre aquilo que chamam, provisoriamente, como a matéria sutil.  

O que sinto no corpo é explicável pela ciência, mas não o que acontece fora e ainda me pertence. A consciência reside no cérebro? O cérebro é instrumento para manifestar a consciência que vem de fora. e não pode ser aferida, embora real e palpável, apesar do paradoxo que isso representa? A alma está no cérebro, ou o cérebro é instrumento para manifestar a alma? A alma e nossas consciências estão fora dos nossos corpos, numa realidade paralela e sutil, mas ainda real e palpável? Alma não existe, falar a respeito é uma grande tolice? Os cientistas engatinham nas especulações e pesquisas sobre o mundo subatômico, que denominam quântico, e o termo já foi aprisionado de forma torpe como apelo comercial usado por charlatões.  

Pensar com a própria cabeça. Alguns dizem que a "própria cabeça" é uma coisa difusa, talvez nem exista, porque seríamos um amálgama de todas as cabeças e pensamentos anteriores, mesmo aqueles já esquecidos, mas que ainda estariam no inconsciente coletivo. Muitos não validam nada disso, nem mesmo o livre-arbítrio, ou alma, apenas cérebro e reações químicas, porque seríamos meros reflexos condicionados e tomamos decisões aprisionadas, mas achamos que estamos plenos e conscientes com a nossa "própria cabeça". 

O mundo em que vivemos é justificado na competição. Desde que nascemos, precisamos vencer e superar, tirar notas altas na escola, chegar à frente dos outros em concursos e competições de toda ordem. Nos ensinam a possuir as coisas de papel passado, inclusive as pessoas com quem nos casamos. Temos de nos certificar por títulos que nos elevam acima dos outros seres humanos. Na natureza, os mais fortes sobrevivem e evoluem, dominam.  

Todos podem possuir o que bem entenderem, mesmo que tenham de passar uns por cima dos outros? E aqui surge a problematização, necessário questionamento ético sobre a responsabilidade coletiva, se existe, porque muito chegam em desvantagem. A roleta do acaso universal nos trouxe em condições desfavoráveis, ou as condições eram iguais a todos, por natureza e origem, mas alguns homens decidiram tomar a maior parte dos recursos disponíveis, em detrimento dos outros? 

Falta nos ensinarem a viver, mas não existe uma receita infalível. De vez em quando, topamos o homem longevo. Ou, nos mostram na tevê, aquela vovozinha nonagenária cheia de saúde longe das metrópoles, o seu fulaninho no meio da floresta, o outro que sempre trabalhou com aquilo que ama. São vários os fatores que nos levam à longevidade e as descobertas mais importantes soam paradoxais.  

No meu planeta idealizado, as crianças recém-nascidas não seriam recebidas com kits de camiseta e badulaques dos clubes futebolísticos afetivos de seus pais. As famílias e os adultos, no entorno do nascituro, estariam ansiosos pelo momento sagrado:  iniciar a nobre tarefa da educação. O filho do cosmos, auxiliado pela generosidade daqueles que o precederam, faria emergir do caos uma fortaleza menos sujeita ao sofrimento desnecessário.  

Parece simplório, e talvez seja, mas os alimentos da alma também precisam ser processados e servidos como a papinha saborosa que as mamães oferecem aos bebês desdentados. Majoritariamente, ainda repetimos o homem imemorial. Apesar de cada vez mais tecnológicos, nossos anseios não mudam e as coisas que acontecem aos homens também se repetem. Muitos desejos trazem muito sofrimento.  

Dinheiro é apenas papel, ou virtual. Não tem valor em si mesmo, se não atribuirmos a ele um significado. É como um Deus nas religiões. Na Antiguidade, para algumas crenças pagãs, o arco-íris era um sinal da aliança entre os homens e o intangível. Hoje, sabemos que a luz branca atravessa as gotas de chuva e a refração faz o espectro de cores, mas na verdade é ilusão de óptica, depende da posição de quem enxerga. 

Eu queria ser humilde o tempo inteiro. Gostaria de ser justo, sem a falsa moralidade do imparcial utópico. Quero ser mais espírito, mas a matéria me puxa para baixo a todo instante. Os limites da minha ética e bom-mocismo terminam nas fronteiras da fome. Do outro lado é a mendicância. Estou vivo, afinal.  

Acredito que alguns ficcionistas antecipam o futuro. Júlio Verne, George Orwell, Aldous Huxley, tantos outros. Creio que o artista tem, por algum motivo que não sei explicar à luz da ciência, a inata capacidade de captar o inconsciente coletivo e até antever o futuro, traduzido na verve artística. Aurora que surge. O faz-de-conta não existe, nem esse mundo em definitivo, mas as duas coisas se tornam reais pela mesma via, dentro de nós. Eu sou o que sou, sem nunca ter sido. Quem pensou ter me visto, não era eu. Quando me viram eu já havia passado. Se olharem para trás, nas curvas do tempo imemorial, lá estarei outra vez, sempre despercebido. 

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